Em Artes, Destaques

(Entrevista com o cartunista francês Plantu – Paraty/RJ)

Por Gisele Vitória

Ao responder que trabalha há 43 anos no jornal francês Le Monde, o cartunista Jean Plantureux provoca risos ao brincar que tem 92 de idade. Plantu, como é conhecido, assina desde os anos 1970 os desenhos da primeira página do mais importante diário da França. Na verdade com 63 anos de idade, ele começou no Le Monde aos 20. Sua história se confunde com a do humor político em Paris.

Nunca pensou em trocar de jornal?

Penso todos os dias. Não é nada fácil. Faz mais de 40 anos que estou pensando nisso.

Depois do ataque ao Charlie Hebdo, você passou a ter medo?

Foi uma tragédia para mim. Eu conhecia todos os cartunistas que foram mortos em janeiro. Sempre que estou com pessoas muçulmanas, explico que os cartunistas do jornal Charlie Hebdo nunca quiseram ofender, nunca quiseram cometer uma blasfêmia. Eles só queriam brincar, fazer piadas. Faz parte da nossa cultura na Europa. Mas não é a cultura dos fundamentalistas. Depois disso, nós criamos uma nova associação com Kofi Annan, na ONU, e juntamos cartunistas para imaginar o que seria o nosso futuro. Hoje temos de entender o mundo globalizado. Quando fazemos um desenho aqui há pessoas a 10 mil quilômetros que não vão entendê-los.

Qual é a batalha agora?

A batalha contra o fundamentalismo é uma batalha contra a ignorância. É a ignorância dos fundamentalistas quando eles não são capazes de entender nossos desenhos e também a nossa ignorância na Europa em relação ao que eles têm na cabeça no Oriente Médio. Na Europa, nós não temos informação do pensamento de culturas de outras populações. Queremos construir uma ponte entre a religião e a opinião. Uma ponte entre culturas. Com nossas canetas nós temos o dever de construir essas pontes. E com respeito. 

Ficou perigoso ser cartunista?

Em números, não. Intolerância no mundo não é o problema. Há lugares onde isso é proibido e você continua a fazer os cartoons. Em Medellin, na Colombia, eles têm o problema das Farc e o narcotráfico. Há uma grande intolerância lá.  Há anos o prefeito pediu a Botero que fizesse uma escultura numa praça. Um atentado destruiu a imagem e matou mais de 20 pessoas.  Botero sugeriu que se deixasse na praça a peça danificada, juntamente com uma nova. Há cinco anos não há novos ataques. A arte é mais forte que a intolerância. O humor é mais forte que a intolerância. Há ditaduras, mas nós fazemos o nosso trabalho. No Marrocos é proibido desenhar o rei, porque acredita-se que ele é descendente do Profeta. Tenho um amigo que desenhou um anel numa mão, e todos entenderam que era o anel do rei. Mas ele não desenhou a face e contornou o problema. Em todo lugar onde há intolerância, a arte é mais forte. 

Uma charge sua do Papa Bento XVI, representando uma cena de pedofilia, criou uma grande polêmica. Como foi?

 Tive problemas com a Justiça, mas tudo se esclareceu. O cartoon foi publicado no Le Monde há cinco anos. Um partido de extrema direita me processou, mas eu ganhei a causa. A Igreja não fez nada. Eu publiquei a charge e, uma semana depois, publicamos na revista de final de semana do Le Monde os bastidores com editores no momento em que apresentei o desenho e os convenci a publicar. Levei dois dias para convencer o editor chefe, que ficou chocado. Lá argumentávamos que Bento XVI não fez nada contra a pedofilia e, assim, deixou as crianças desprotegidas. O juiz deu ganho de causa a mim. Fiz essa dissociação e mostrei que meu trabalho defende as crianças. O juiz entendeu que a charge defende as crianças cristãs. O processo durou cinco anos. 

Há uma polêmica no Brasil em torno de adesivo para tanque de gasolina dos carros com o rosto da presidente Dilma Rousseff numa montagem que sugere uma posição sexual. Considera o adesivo ofensivo?

Acho um pouco ofensivo, sim. Você não acha?

Também acho. Mas qual é a sua opinião?

Não me interesso por esse tipo de humor. Acho fácil de fazer esse tipo de desenho de mulheres com motivação sexual. Não acho graça. 

Poderia comentar a diferença entre esse tipo de piada e a piada provocada por seu cartoom do Papa Bento XVI e a pedofilia?

Há uma grande diferença. Há uma causa no meu desenho. A postura do Papa Bento XVI e as crianças violentadas na igreja. O Papa simplesmente mandou esses padres para outras paróquias. Essa atitude foi atacada pela imprensa e pelas ONGs de direitos humanos. Bento XVI nunca quis fazer o trabalho dele de proteger as crianças. Eu fiz aquele trabalho para proteger as crianças. Há dois problemas que atingem as crianças. O primeiro é o estupro. E o segundo é que ninguém faz nada. Não há alarde, barulho. São duas agressões às crianças.  É injusto. Horrível. Minha parte é protestar contra o que estão fazendo com as crianças dentro de igrejas. Não é a mesma coisa que a montagem da Dilma.

O que viu de mais interessante na Flip, em Paraty?

O que mais me impressionou e cativou foi a atenção do público, silencioso. Se eu levasse Chico Caruso ou Ziraldo para falar em Paris, não estou certo se eles seriam ouvidos por 800 pessoas escutando com tanta atenção. Uma vez estive em São Paulo e assisti a um show de Chico Buarque, a quem admiro, e fiquei impressionado com o público, que o acompanhava. Sinto uma energia a tal ponto que me provoca uma esperança no ser humano.

Quando esteve pela primeira vez no Brasil?

Foi em 1986. Havia um filme sobre mim, no Rio. Eu encontrei meus amigos Chico e Paulo Caruso. E Chico me levou até Tom Jobim. Fomos a um bar no Leblon. Quando ele chegou, eu não tinha voz para pronunciar: ‘Tom Jobim’ (imita uma voz engasgada). Ele falou comigo em francês, era risonho, e eu não dizia nada, petrificado. Voltei a Paris com partituras para entender como se tocava aquela forma de música no violão. Com aquela partitura, tive um momento mágico. Com os acordes dissonantes da Bossa Nova eu entendi a cultura brasileira. 

Sente diferenças entre o Brasil de 30 anos atrás e o atual?

Na Europa, se fala da ditadura na Argentina e no Chile, mas muito pouco da ditadura que aconteceu no Brasil. Os editores do Le Monde me pediam desenhos sobre El Salvador, Nicarágua. Mas na época, o que se falava era que o Brasil não era realmente uma ditadura. 

Qual o desenho que você faria do Brasil, hoje?

Se eu fosse capaz, desenharia todos os olhos dos brasileiros, cativados pelo que os outros têm a dizer. (Ele começa a desenhar na hora, e se desculpa por não ter as canetas para colorir as bandeiras. “Estão faltando cores. Não é uma obra de arte”). Poderia brincar com a bandeira nacional dentro dos olhos das pessoas. E acrescentaria a música, pois gosto muito. (Ele desenha uma nota musical com corações nas pontas). Sempre achei isso do brasileiro, na maneira de ser, curioso do outro. Nós, da Europa, sempre temos algo a aprender. Na França, podíamos ter aulas de amor e gentileza para aprendermos (com vocês) a ser mais atenciosos.

Qual é o cartoon que mais se orgulhou de ter feito?

Gosto de mostrar o desenho que fiz com Yasser Arafat, quando a meu pedido, após lhe oferecer um desenho inacabado de duas bandeiras, ele desenhou a bandeira de Israel e a da Palestina. Isso faz 24 anos. Depois, repeti o desenho sugerindo o mesmo a Shimon Peres, em 1992.  (Dois anos depois, Arafat e Peres ganharam o prêmio Nobel da Paz) Esse momento mudou a minha vida. Determinou o rumo do meu trabalho. O primeiro encontro, com Arafat, aconteceu na Tunísia e o segundo, com Peres, em Jerusalém. 

Como abordou Arafat?

Foi Arafat quem me procurou. Ele me ligou e disse: “Vem para Tunísia me encontrar”. Quando nos encontramos sugeri dividirmos um desenho. O encontro durou quatro horas, levei uma câmera. Eu pensava que seria um encontro formal, com um homem político, mas no final era como se eu estivesse fazendo o papel de babysitter com meus lápis. Era como uma babá ao lado de um menino desenhando. Fizemos um outro desenho, pensando numa moeda para quando houvesse paz na Palestina. Arafat fez um desenho juntando o candelabro dos judeus, a cruz dos católicos e a lua crescente, símbolo do islamismo. Ele reuniu as três religiões. 

Qual foi a repercussão?

Quando voltei, estava muito orgulhoso, mas por nove meses eles guardaram o documento num armário. O jornal não quis publicar.

Como não?

Os jornalistas tinham uma cultura de que o trabalho do cartunista não era esse. Cada vez que eu ia até o editor de internacional perguntar por que ele não utilizava o desenho e contava aquela história, ele respondia que tinha coisa mais interessante para publicar. Olhando por nove meses para o vídeo sobre o encontro, às vezes eu pensava comigo: talvez não seja mesmo importante. Depois, recebi um prêmio internacional pelo documentário que fiz com Arafat. E o jornal Liberation se interessou em fazer uma entrevista. Então falei para o editor chefe do Le Monde na época: ‘Amanhã vão sair três páginas no Liberation sobre aquilo que você guardou no armário por nove meses’. Ele disse que se saísse eu seria demitido. Argumentei que fazia nove meses que ele tinha o material e não publicava. No dia seguinte àquela conversa, finalmente o Le Monde publicou uma grande reportagem. 

E com Shimon Peres?

Foi um ano depois. Quando fui a Jerusalém, o encontro foi amplamente divulgado, com cobertura da televisão francesa. 

Hoje você é considerado o maior cartunista da França, certo?

Hoje é fácil falar isso, agora que todos os outros foram mortos. Eles eram muito maiores. 

E você se inspirava em algum deles particularmente?

Quando eu era adolescente, era fascinado pelos desenhos do Cabu. Eu me inspirava bastante nele. E em Wolinski. Eu adorava seu estilo de fazer desenhos desrespeitosos.

Para acesso ao texto original acesse IstoÉ: http://bit.ly/1I4qCa0

Gisele Vitória. Jornalista.


Créditos de imagem: Plantu, 2015.

 

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