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Nestes dez últimos anos, dentre as dez óperas encenadas com maior freqüência no mundo ocidental, cinco foram compostas por um único compositor; Wolfang Amadeus Mozart [1756-1791]. Para a posição de mais encenada de todas, “A Flauta Mágica”, de Mozart, alterna com a “Carmen” de Georges Bizet. O poderoso drama de Prosper Mérimée que serve de base para o libreto da última obra nada deixa a desejar a qualquer tragédia de Ésquilo, Sófocles ou Eurípedes quanto à violência dos instintos e profundidade psicológica.

A música de Bizet é talhada para a ópera: ritmo agressivo, melodias enfáticas, o exótico do mundo cigano-espânico, instrumentação exuberante e, até mesmo, o motivo condutor (leitmotiv) emprestado de Wagner. Além do mais, “Carmen” foi progressivamente aprimorada por terceiros com o intento de torná-la mais atraente ao público contemporâneo, pela introdução de danças e supressão de recitativos.

Em contraste, “A Flauta Mágica” é uma fábula infantil de extrema ingenuidade e estruturada em formato obsoleto, o singspiel. E o suposto libelo oculto, de origem maçônica, é ainda mais ingênuo, e é muito pouco provável que o espectador, por mais cultivado que seja, esteja consciente do seu conteúdo durante a apresentação da obra. Então como seria possível explicar o sucesso dessa e das demais óperas de Mozart, posto que elas, embora versando sobre assuntos diversos, também encerram a mesma candidez?

Oscar Thompson, já há quase um século, descreve a história da ópera como a de um permanente conflito entre o teatro e a música, um casamento condenado à imperfeição pela própria natureza das partes – o racionalismo e a clareza do texto, de um lado, e a intuição e o instinto musical, de outro. Música e teatro podem ser reduzidos, assim, aos antigos conceitos de dionisíaco (instinto) e apolíneo (racionalidade), com o que se percebe a natureza da imiscibilidade elementar da música com o teatro. E o êxito ou fracasso de uma ópera se mede, em certa medida, pelo sucesso com que o compositor consegue contornar esse obstáculo.

O intelecto, a psique de Mozart são revelados, pelo menos parcialmente, em sua extensa correspondência, no testemunho abundante de contemporâneos e, para os iluminados, em sua música. Isto é destilado em profícuas análises críticas e biografias as mais diversas. Há, todavia, um ponto de convergência, a saber, a constância de um traço psíquico marcante de indelével juventude, para não dizer de imaturidade. Maynard Solomon, em sua ousada, porém eloqüente, biografia de Mozart, salienta sua relação edípica com o pai, do que podemos inferir uma condição que os psicanalistas denominam de “fobia edípica ao desenvolvimento”. Mais recentemente essa condição tem sido popularizada sob a denominação de “síndrome de Peter Pan”. Ou seja, a aversão ao amadurecimento com o propósito inconsciente de evitar conflitos com o pai. Essa visão, entretanto, nos parece inadequadamente pejorativa e, por isso, recorremos a outra mais fundamental, a uma perspectiva biológica, ou melhor, etológica.

[O paleontólogo norte-americano] Stephen Jay Gould [1941-2002], utilizando-se do pensamento lúcido de Konrad Lorenz, fez uso em quase todos os seus livros do conceito de “neotenia”, um fenômeno bastante abrangente no mundo natural. Ele consiste na extensão involuntária da juventude fisiológica e psíquica, o sonho de todas as mulheres (e alguns homens também).

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Stephen Jay Gould

Todavia as intenções da natureza são bastante diversas daquelas de nossas socialites. Algumas espécies (não as socialites) prorrogam seus estágios de desenvolvimento, inclusive larval, com o propósito de manter a capacidade de agregar características que lhes permitam se adaptar a mudanças do ambiente, o que seria impossível na maturidade. Ou melhor, adaptabilidade é uma propriedade do jovem, e não do adulto. Observa-se, por exemplo, que o aprendizado de novas técnicas, tais como o uso de ferramentas em primatas gorilas, chimpanzés etc., é domínio das fêmeas, e não dos machos. O que é atribuído à neotenia essencial à fêmea, que tem o dever de educar os filhotes, principalmente por intermédio de brincadeiras e lutas. Como conseqüência dessa neotenia, a fêmea do primata aprende mais facilmente do que o macho, o que resulta em maior criatividade.

Dentre os primatas, o homem é uma exceção (graças a Deus, senão quem iria agüentar as feministas!). Observa-se também que, quanto mais evoluída a espécie, maior o período que antecede a maturidade. Assim sendo, o Homo sapiens é a espécie que mais estendida tem a sua juventude. Antes que a medicina tivesse prorrogado sua expectativa de vida artificialmente, a maturidade só era alcançada com um terço do tempo de vida do homem. Um ruminante a alcança com um décimo, um cão, com um sexto, e, um chimpanzé, com um quinto, em média. O homem é, pois, essencialmente um animal neotênico. E a sabedoria popular nos informa que cientistas, artistas, pensadores etc. têm seu período de maior fertilidade intelectual muito cedo e mantêm uma relativa infantilidade para o resto de suas vidas. Lembra-se da fotografia de Einstein mostrando a língua não se sabe se para a humanidade, para a posteridade ou para a divindade?

Pois bem, a hipótese que é aqui proposta para o sucesso das óperas de Mozart é a de que elas refletem seu próprio dilema, o da superação da juventude, exigida pela sociedade repressiva de Salzburgo ou mesmo de Viena, com que tinha de conviver. Suas óperas contornam a antinomia dionisíaco-apolínea sublimando-a como um processo de transição adolescência-maturidade, que atormenta a todos aqueles de sensibilidade.

Papageno, o homem-pássaro condenado à infância perpétua, é um paradigma. A chave para entender “A Flauta Mágica” está no terrível conselho oferecido pelos três meninos anjos a Tamino. “Este caminho o levará ao seu objetivo (a liberação de Pamina, o casamento). Deve você, jovem, entretanto, pelejar como um homem (adulto)… Seja firme, paciente e discreto. Então, jovem, como homem será você vitorioso.” Tamino e Pamina são os adolescentes a caminho da incômoda maturidade. Monotastos e a Rainha da Noite representam a pragmática e egocêntrica idade madura.

Em “Così Fan Tutte” estão os desencontros de quatro adolescentes (em mentalidade) em um jogo de busca e fuga do matrimônio, ou seja, da estabilidade que convencionalmente representa a maturidade, a idade da razão, o estado de adequação social. Leporello, no “Don Giovanni”, é, por uma sutil inversão, o adulto sem escrúpulos. E “Don Giovanni” é a criança travessa que, por recusar-se a crescer, é castigada por um fantasma, uma estátua, símbolo justo da madureza, da infertilidade.

Novamente, em “O Casamento de Fígaro”, este foge enquanto pode ao casamento, enquanto Almaviva, eterno adolescente, continua atormentando as moçoilas. É claro que em todas as instâncias é sempre o incomparável instinto musical de Mozart que encontra os meios para acentuar a temática básica de suas óperas, a solução de sua própria ambigüidade entre a criatividade do jovem e a racionalidade infértil do adulto.

Wolfgang Amadeus Mozart

Così Fan Tutti

Libreto: Lorenzo da Ponte

Orchestra of the Age of Enlightenment – The Glyndebourne Chorus

Maestro Ivan Fischer  

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http://www.youtube.com/watch?v=8OUrafVroho

Créditos de imagem: operamundi.uol.com.brlabspace.open.ac.uk


*Publicado originalmente no jornal FSP de 04 de julho de 2004.

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