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5 – O Classicismo

Nós vimos que o epicentro da invenção musical se desloca da Itália para a França em começos do segundo milênio, deslizando para as terras flamengas (Ducado de Borgonha) antes do final da primeira metade do segundo milênio e se instalando na Itália em fins do Renascimento. O que acontece agora, já em meados do século 18, é uma transição geográfica tão aguda quanto a mudança de estilo. É agora no mundo germânico, Alemanha e Áustria, que irá ocorrer a mais profunda revolução no estilo da música ocidental.

O contraponto havia chegado a um nível de perfeição tão elevado, por Bach, Handel e outros, que não havia mais o que ser inventado dentro do mesmo universo formal. A solução seria derrubar todo o edifício. Renova-se o conceito de homofonia, que permanecia embrionária desde inícios da ópera renascentista. As vozes múltiplas já não se contrapõem em ritmo e melodia, mas colaboram na expressão de uma mesma ideia. Com a polifonia o interesse do espectador era obrigado a se concentrar em um período curto de tempo para poder compreender o diálogo de muitas vozes expressando ideias diferentes. Na homofonia o que importa é o desenrolar de uma única ideia, ou poucas, colocadas em sucessão. A música instrumental, tanto quanto a vocal, se torna assim uma “narrativa”.

Joseph Haydn

Joseph Haydn

A figura central dessa revolução é Joseph Haydn, embora muitos sejam os seus precursores. Mas é Haydn que pacientemente vai, por meio de uma infinidade de experiências, elaborar ao longo de décadas, com a colaboração de seu genial discípulo Wolfgang Amadeus Mozart, a mais complexa e misteriosa “receita” para a produção musical de todos os tempos, a “forma-sonata”. Essa é a fórmula básica do primeiro e, por vezes, de outros movimentos de quase todas as composições instrumentais do classicismo, do romantismo e de muitos autores posteriores a estes períodos. Sinfonias, concertos, quartetos e outros agrupamentos de câmara adotam esta estrutura, extremamente rígida, mas, não obstante, versátil e eficaz.

A macroestrutura da forma-sonata é a segmentação didática tradicional. Exposição – Desenvolvimento – Recapitulação, a mesma fórmula para uma boa aula ou para um discurso demagógico. Até aqui tudo é muito simples. A coisa se complica é com a microestrutura. Em primeiro lugar, são utilizados quase sempre dois temas básicos, contrastantes. A tonalidade do primeiro tema, o principal, geralmente de caráter viril, é na tônica, maior ou menor. O segundo tema, de caráter geralmente “feminino”, é escolhido tanto quanto à tonalidade, como quanto à melodia, ritmo e dinâmica, em contraste com o tema principal. Outros elementos musicais – pontes, codetas etc.- são introduzidos nos três segmentos do movimento, ou como temas derivados, ou como material independente. É um teatro completo. Fortes relações entre tonalidades dos temas e suas formas derivadas acabam por constituir regras tão rígidas quanto aquelas do intrincado contraponto que acaba de ser deposto. Artistas são como os burocratas, fazem suas revoluções, destroem regras nefastas, conseguem uma tão almejada liberdade, apenas para poder escolher outras prisões, outras burocracias, outras regras.

6 – O romantismo

Uma das questões que são colocadas com mais frequência por melômanos é se seriam Beethoven e Schubert clássicos ou românticos. Pois bem, de acordo com os critérios aqui apresentados, eles seriam autores clássicos, pois do ponto de vista formal pouco diferem de Haydn e Mozart. Mas haveria compositor mais romântico que Beethoven? Pois bem, o paradoxo está justamente nessa ambivalência do romantismo. O herói precisa lutar continuamente contra os grilhões que limitam sua liberdade. Não há herói em tempos de paz. A rígida estrutura da forma-sonata oferece a Beethoven infinitas possibilidades de transgressão. Por outro lado, também disciplina sua rebeldia. Ninguém violentou mais a forma-sonata que Beethoven e ninguém a explorou tão bem. Eis por que Beethoven é o primeiro e maior dos românticos da música ocidental. Mas foi ele um revolucionário ou um reacionário? Beethoven inovou tanto ou mais que qualquer outro músico, não na forma, mas no abuso de forma.

7 – Moderna e contemporânea

“O novo, somente o novo interessa ao homem”, disse o romântico Goethe. A forma-sonata se lastreava não só em algumas fórmulas harmônicas bem-sucedidas, mas também na necessidade do homem do século 19 de introspecção e autoanálise. Mas até a perfeição da forma-sonata envelhece, como também a harmonia clássica, o diatonalismo.

Assim, bastaram quatro minutos para que o gênio de Debussy derrubasse o sólido edifício diatônico que tomou cinco séculos para ser erigido e ferisse mortalmente o estilo narrativo e seu clímax, a forma-sonata, e ainda abrisse caminho à revitalização do ritmo como elemento musical autônomo.

Foi em 1894 que Debussy apresentou seu revolucionário “Prélude à l’Après-midi d’un Faune”. Esses quatro minutos representam, de fato, o prelúdio de uma nova era na música ocidental, pois todas as regras haviam sido rompidas, sutilmente embora, sem o estardalhaço com que Stravinski, 20 anos depois, imporia o ritmo como um parceiro igualitário na composição.

O período a que nos referimos como música moderna costuma ser encerrado em análises correntes, com a Segunda Escola de Viena e seus geniais mentores, Schoenberg, Webern e Berg. O diatonalismo só foi formalmente considerado ultrapassado quando substituído por outro sistema oficialesco. Nesse caso, o serialismo dodecafônico. Todavia, se tivéssemos o cuidado hoje de fazer uma estatística, veríamos que há um número equivalente de compositores neoclássicos ao de compositores que rejeitam de fato a harmonia clássica. Se a intenção de Debussy era a de eliminar paradigmas e regras, esse objetivo acabou sendo alcançado. Não há um estilo musical próprio da nossa época, mas uma multitude de experiências divergentes, muitas das quais interessantes, inspiradas mesmo, mas nenhuma, ao que aparece até agora, capaz de gerar um estilo característico de nossa era.

 

Claude Debussy

Prélude à l’Après-midi d’un faune

L’Orchestre symphonique de Montréal, Charles Édouard Dutoit

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https://www.youtube.com/watch?v=bYyK922PsUw

 

Créditos de imagem: allposters.com, logoseletronico.com

*Publicado originalmente no jornal FSP de  09 de Maio de 1999

 

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