Em Destaques, Vida Nacional

Por Pedro Henrique Pedreira Campos

Quando se analisa a política externa de um país a partir de uma perspectiva crítica, lastreada no materialismo histórico e sob as premissas da totalidade, da historicidade e de uma sociedade constituída por classes sociais e frações de classe, deve-se levar em conta algumas ponderações, como as enunciadas pelos historiadores da política externa, Paulo Vizentini e José Luiz Werneck da Silva. Segundo eles, para analisar uma política externa, é necessário colocar em questão quais grupos sociais são os seus beneficiários e também quem são os responsáveis por suas diretrizes. Deve-se levar em conta também como os aparelhos da sociedade civil se organizam e tentam pautar a agenda internacional de um determinado Estado em certo momento e em que medida estes interesses são atendidos pelas políticas públicas adotadas para o setor externo. Assim, fica a questão: quais são os grupos sociais presentes no Estado brasileiro responsáveis e favorecidos pela política externa assumida desde 2003?

Para tentar dar conta dessa questão, é necessário retomar certos aspectos da política externa brasileira nos últimos doze anos. Na área de comércio exterior, por exemplo, os governos liderados pelo PT foram responsáveis por amplo avanço na integração da economia brasileira à capitalista internacional, com aumento do volume de exportações e importações e maior fragilidade em relação aos ciclos da economia mundial. O início do governo Lula se deu em meio a uma crise recessiva aguda na economia brasileira, além de uma desvalorização bastante elevada da moeda nacional. Esses dois fatores associados à expansão da economia internacional e, em especial, da demanda (em particular a chinesa) de produtos básicos, fez com que fossem acumulados elevados superávits na balança comercial brasileira desde 2003, conforme se verifica no gráfico abaixo:

Gráfico 1 – Saldo da balança comercial brasileira entre 2003 e 2014 (em bilhões de reais)

Fonte: Ipea. http://www.ipeadata.gov.br/

Fonte: Ipea. http://www.ipeadata.gov.br/

Conforme se pode ver no gráfico, amplos superávits foram acumulados entre 2003 e 2012, com um acentuado recuo nos anos seguintes, chegando ao déficit na balança em 2014, o primeiro desde 2000. É interessante notar que, em paralelo ao Ministério de Relações Exteriores, o Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior desempenhou um papel importante na promoção das exportações brasileiras desde 2003. O governo Inácio da Silva indicou o empresário Luiz Fernando Furlan para o cargo de ministro em 2003, sendo ele então acionista e presidente do Conselho de Administração da Sadia, uma das principais exportadoras brasileiras do período. Com diversas políticas e medidas favoráveis, os exportadores – em particular os de produtos básicos – foram alguns dos grandes beneficiários das políticas públicas, em especial da política externa, desde 2003. A política exterior atuou para ampliar os horizontes das exportações nacionais, buscando novos parceiros e tomando medidas para abrir mercados para os produtos brasileiros.

São várias as características da política externa brasileira pós-2003 e não cabe aqui discorrer sobre todas. Em linhas gerais, podemos dizer que os governos Inácio da Silva e Rousseff indicaram como as áreas prioritárias de atuação da política externa brasileira a América do Sul, a África e os grandes países da periferia. Em relação à América do Sul, o projeto era avançar na integração regional, fortalecendo o Mercosul e formando a Unasul (União de Nações Sul-Americanas), em prejuízo da Alca (Área de Livre Comércio das Américas), cujo projeto foi encerrado no período, em função, em boa medida, da intensa atuação da diplomacia brasileira. Em relação à África, foram criados projetos de cooperação técnica, cresceu substancialmente a presença de empresas brasileiras nos países do continente e foi particularmente significativa a diplomacia presidencial, com viagens para os países africanos e recepção de chefes de Estado locais no Brasil. Por fim, em relação aos grandes países da periferia, os governos petistas criaram o Fórum Ibas (Índia-Brasil-África do Sul) e formaram o bloco dos BRICS, que avançou significativamente nos últimos anos, em especial com a Conferência de Fortaleza em 2014, que resultou na criação de um banco do bloco e outras medidas que podem ter forte impacto no sistema internacional nos próximos anos.

Na área multilateral, o governo brasileiro teve uma atuação bastante ativa, principalmente no governo Lula, no sentido de reivindicar um maior protagonismo nas organizações internacionais. Assim, passou a demandar de maneira veemente a reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas, com vista a demandar uma vaga permanente com direito a veto no órgão. Da mesma forma, defendeu a reforma do sistema de cotas do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, com distribuição da participação das potências tradicionais da Europa e América do Norte em favor dos chamados “emergentes”, incluindo o Brasil. A diplomacia brasileira passou a tentar ocupar cargos de destaque no sistema internacional, tendo como resultado diversos fracassos e algumas vitórias, como a eleição do diplomata brasileiro Roberto Azevedo para o cargo de diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC) e de José Graziano da Silva para a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). Por fim, com intensa atuação política em organizações privadas internacionais, o Brasil obteve o direito de sediar a Copa do Mundo Fifa de Futebol em 2014 e as Olimpíadas no Rio de Janeiro, em 2016.

Fica a questão de o que está por trás dessas novas prioridades e opções da política externa brasileira. Coincidência ou não, malgrado o argumento da solidariedade com os parceiros sul-americanos e africanos, essas foram as áreas principais de avanço das multinacionais brasileiras desde 2003.

Uma das principais marcas da ação brasileira a partir do início do século XXI é justamente a vigorosa ascensão das empresas domésticas no exterior. Fortemente escoradas por políticas do aparelho de Estado, essa empresas fincaram posições em diversas partes do globo, com destaque especial para a América do Sul e, em uma escala um pouco menor, para a África. O Estado brasileiro conferiu uma série de facilidades que viabilizaram esse movimento, ao garantir financiamento a taxas subsidiadas pelo BNDES, crédito também pelo mesmo banco para a aquisição de ativos fora do país, além de injeção direta de capital através do BNDESPar e dos fundos públicos para a formação de grandes conglomerados, com maior capacidade de êxito no mercado externo. Além disso, a política externa brasileira agiu em favor dessas empresas de maneira corrente, além de socorrê-las em situações de dificuldades. A diplomacia presidencial também foi mecanismo usado em favor da atuação dessas empresas fora do Brasil e, no caso de Inácio da Silva, houve uma situação peculiar, em que o ex-presidente continuou atuando como uma espécie de “caixeiro-viajante” dessas empresas fora do país, mesmo após o fim do mandato.

Dentre as empresas brasileiras que tiveram intensa atuação no exterior no período pós-2003, destacam-se algumas, como Petrobrás, Vale do Rio Doce, Gerdau, grupo Votorantim, CSN, Itaú, Brasil Foods e JBS Friboi. Dentre outras empresas e setores, teve destaque também a atuação no exterior das empresas brasileiras de construção pesada, as empreiteiras. Atuantes fora do país desde o início da ditadura (seus primeiros contratos no exterior datam de 1968), essas empresas tiveram suas atividades impulsionadas de forma inédita no período, como se verifica no gráfico abaixo.

Gráfico 2 – Quantidade anual de contratos assinados por empreiteiras brasileiras no exterior

Fonte: CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira. “O processo de transnacionalização das empreiteiras brasileiras, 1969-2010: uma abordagem quantitativa”. In: Tensões Mundiais. Vol. 10, 2014. p. 113.

Fonte: CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira. “O processo de transnacionalização das empreiteiras brasileiras, 1969-2010: uma abordagem quantitativa”. In: Tensões Mundiais. Vol. 10, 2014. p. 113.

Os índices inigualáveis de contratos assinados no exterior no período pós-2003 por parte das empreiteiras brasileiras se explicam em boa medida pelo amplo suporte dado pelo Estado brasileiro no período, principalmente na forma de financiamento facilitado e ação diplomática favorável. Várias viagens oficiais foram usadas para assinatura de acordos e contratos de obras de empresas nacionais no exterior. Além disso, em situações de desentendimento com o órgão contratante no exterior, a diplomacia brasileira intercedeu em favor das empresas, defendendo suas ações e fornecendo garantias estatais às suas atividades.

A nós interessa que o país tenha empresas, inclusive, que possam partir para um processo de expansão internacional. Nenhuma empresa hoje pode olhar só para o tamanho do seu mercado local. Achamos fantástico que o [Jorge] Gerdau tenha adquirido ativos no resto do mundo (Dilma Rousseff).

Na passagem do governo Inácio da Silva para o período Rousseff, houve um certo rearranjo na atuação internacional brasileira. Com clara mudança de estilo, a nova presidente passou a atuar de maneira mais discreta e reservada na área internacional, reforçando o pragmatismo e importância relegada às relações econômicas externas. Apesar de alguns fatos impactantes no período – como a eleição de Roberto Azevedo na OMC, a incorporação da Venezuela ao Mercosul com a suspensão do Paraguai, o cancelamento da visita de Estado aos EUA e a consolidação do grupo dos BRICS em Fortaleza -, a estratégia política adotada parece reservar um caráter mais secundário à política exterior, sendo em parte expressão disso a queda abrupta da prática da diplomacia presidencial e a menor importância relegada à política multilateral brasileira.

No entanto, uma linha de continuidade na política externa brasileira tem sido justamente o pleno suporte às atividades das empresas brasileiras no exterior. Prova disso é a manutenção da estratégia do BNDES de financiamento para projetos no exterior e dos próprios quadros da instituição, desde o final do período Inácio da Silva. Toda a parceira estratégica com Cuba, envolvendo a reforma do porto de Mariel e dos aeroportos cubanos por empreiteiras nacionais com financiamento público brasileiro, além do programa Mais Médicos e projetos na área de etanol, é sintomática desse apoio à internacionalização das empresas brasileiras que se manteve ao longo dos últimos anos.

Assim, mesmo que o futuro sinalize uma tendência para um maior empenho na retomada dos superávits na balança e uma agenda mais comercial e pragmática para a política externa brasileira, tudo aponta para a continuidade do apoio às multinacionais brasileiras, senão como elemento principal, ao menos como um dos aspectos mais importantes na política externa brasileira.

Leia o texto integral: http://bit.ly/1G6bWWH

Pedro Henrique Pedreira Campos. Professor do Departamento de História e Relações Internacionais (DHRI) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).


Créditos de imagem:  cidademarketing.com.br

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