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Um dos enigmas do Barroco é o débito de Haendel, no que diz respeito à música instrumental, para com Corelli em contraste com a afinidade evidente entre Bach e Vivaldi. Pois seria de esperar uma maior influência do conservador Corelli no intimista Bach e maior correlação entre o cosmopolita Vivaldi e o extrovertido Haendel. Corelli deixou um número muito pequeno de composições. Doze Concerti Grossi e sessenta Sonatas é quase tudo que compôs, o que caberia em apenas 9 ou 10 CDs.

Haendel teve uma produção maior que Corelli no que diz respeito à música instrumental, mas muito inferior à da maioria de seus contemporâneos. Além dos bem conhecidos Concerti Grossi dos Op. 6 e 3, dezoito ao todo, e dos Doze Concertos para órgão dos Op. 4 e 7, além de outros cinco avulsos, e algumas composições festivas como a Música Aquática e os Fogos de Artifício, escreveu Haendel apenas uns dez outros Concertos. Sua contribuição à música de câmera também é reduzida, pouco mais que as quinze Sonatas do Op. 1 e os dois conjuntos de Trio-Sonatas dos Op. 2 e 5. E a obra completa para cravo é constituída de apenas umas trinta Suítes e peças menores. Enfim, toda a música instrumental de Haendel não ocuparia mais de trinta discos. Para contraste, lembremos que somente a obra de Bach para cravo e órgão preenche quarenta discos e os Concerti Grossi de Vivaldi, pelo menos uma centena. Além do mais, Haendel compunha com imensa facilidade e rapidez. Os Doze Concertos do Op. 6, por exemplo, foram compostos em um único mês. Com essa velocidade toda sua música instrumental poderia ter sido composta em apenas um ano. Haendel, por outro lado, não se incomodava muito em se repetir, transcrevendo suas próprias peças e, eventualmente, tomando emprestado de outros o material que lhe conviesse. Tenho a impressão de que uma avaliação detalhada mostraria que pelo menos 20% de sua música instrumental é reaproveitada. A ética vigente àquela época autorizava esses empréstimos, contanto que houvesse uma melhoria. O interesse da arte prevalecia, pois, sobre a moral. Talvez seja por isso que temos hoje a impressão de que na música são sempre os grandes que se apoderam das ideias dos medianos.

O grande intérprete da música orquestral de Haendel, na era do disco de longa duração, foi August Wenzinger que, com o auxílio da Schola Cantorum Basiliensis, nos deu excelentes versões dos Op. 6 e 3 além dos Concertos para órgão, tanto os conjuntos de Op. 4 e 7 como os avulsos. Ninguém melhor que Wenzinger percebeu e tirou partido dos grandes gestos generosos da melodia haendeliana. O pincel espesso e as tintas puras, sem matizes. O traço rasgado e os contornos nítidos e precisos. A irrelevância da filigrana e a sensualidade das grandes e espessas curvas. O ritmo sobrepondo-se ao timbre e a melodia homofônica oprimindo a textura polifônica. Isso tudo Wenzinger pôde entender. Infelizmente a Deutsche Grammophon, para renovar seu catálogo, substituiu na década passada Wenzinger por Karl Richter, que não percebe a diferença entre Bach e Haendel. É claro que o gênio de Haendel sobrevive à imperícia de Richter e sua Orquestra Bach de Munique. Mas agora a empresa alemã se redime lançando o Op. 6 com Pinnock e seu Concerto Inglês na marca Archiv como os anteriores. É a versão definitiva pelo menos tanto quanto Wenzinger o foi por vinte anos. Melhor que Richter se mostra Marriner com a Orquestra de Saint Martin-in-the-Fields. Apenas um pouco pesado, mas ainda longe de Wenzinger e de Pinnock.

A interpretação de Malgoire não é de todo má, um pouco minuciosa e preciosista demais para meu gosto. Haendel precisa de espaço. É um erro tentar colocar sua música em um relicário. O Collegium Aureum como também a Orquestra de Câmera de Toulouse nos dão interpretações honestas, mas sem muita convicção. As incursões de Karajan nesse domínio são demasiadamente extravagantes e anacrônicas sem qualquer qualidade compensatória.

Muito do que dissemos acima vale também para a Música Aquática e os Fogos de Artifício. Harnoncourt se mostra melhor em Haendel que Richter e às vezes se deixa levar pela musicalidade arrebatadora da arte haendeliana, mas a melhor surpresa nos é dada por Hogwood e sua Academia de Música Antiga. É tão bom na Música Aquática quanto Pinnock no Op. 6. Boulez, também facilmente encontrável, é menos caloroso que Harnoncourt, mas também aceitável.

A melhor versão dos Concertos para órgão é ainda aquela de Wenzinger e a Basiliensis com Müller. Harnoncourt com Tachezi é apenas morno. O arrebatamento e a graça que caracterizam essas maravilhosas obras ficam inteiramente esquecidos. Malcolm e Marriner estão um pouco melhor, mas assim mesmo permanecem insatisfatórios. Marie-Claire Alain é suave enquanto a Orquestra Paillard é excessivamente estridente.

Não há em catálogo versões completas do Op. 1 ou mesmo do 2 e do 5. Mas Melkus com Müller, Wenzinger e Scheit apresentam uma excelente versão das Sonatas para violino Op. 1 para a Archiv e Brüggen nos dá uma elegante interpretação das Sonatas para flauta traverso, oboé e flauta-doce para a ABC com a ajuda de Haynes, van Asperen, Bylsma e Lange. Para as Trio-Sonatas há algumas gravações atraentes com Brüggen e Harnoncourt juntos para a Telefunken e Piguet e Haas com Müller para a Archiv. Rampal e Veyron-Lacroix apresentam uma versão ágil das Sonatas para flauta para a Odyssey.

A obra para cravo é ainda mais negligenciada. As interpretações de Tilney, Verlet e Gilbert não são ruins, mas não creio que possam provocar qualquer entusiasmo. Ainda prefiro as de Wolfe, dos anos 60, senão pela exuberância, pelo menos pelo equilíbrio e pela elegância.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 23/10/1983.

George Frideric Handel

Orchestral Works (Part 1/3 – Water Music (complete) – J.C. Malgoire

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