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O erudito Walter Ceneviva nos propõe uma investigação. Seria o Hino Nacional brasileiro inspirado em trechos de uma ópera juvenil de Liszt estreada em 1825, ou inversamente teria o jovem autor húngaro plagiado a medíocre música de Francisco Manuel da Silva? Existem diversos aspectos interessantes dessa questão. Todavia, vamos nos restringir ao problema da pertinência da propriedade intelectual no setor das artes, mais especificamente da música.

Convém não esquecer que o conceito de propriedade intelectual é bastante recente mesmo no setor tecnológico, tendo se firmado apenas por ocasião da revolução industrial. E, então, teve como principal motivação o estímulo à produção que adviria de uma reserva de mercado. Não há, portanto, uma analogia concreta entre propriedade intelectual no setor industrial e artístico.

Imagine apenas o que teria acontecido se Haydn tivesse patenteado a forma sonata. Beethoven teria enlouquecido por certo, pois contrariamente ao que ensinam as professorinhas de conservatório, a forma sonata não se define como uma simples estrutura – exposição – desenvolvimento – reexposição, mas como uma concepção narrativo-dialética do discurso musical. E o que seria de Beethoven sem a dialética, sem o conflito, sem o desenvolvimento temático?

Por outro lado, nunca se atribui o grande valor à invenção melódica. Basta lembrar alguns casos clássicos. Haendel tomava emprestado de si próprio e de outros autores contemporâneos melodias completas, sem qualquer menção explícita. E, à sua época, essa era uma prática aceitável. O próprio Bach a adotava, embora com menor frequência que Haendel. E ambos são considerados dentre os mais fecundos melodistas de todos os tempos.

Beethoven copiou em praticamente todos os aspectos o Quinteto para sopros de Mozart, exceto pela melodia. E nunca ninguém o chamou de plagiador. Soluções harmônicas passam de um autor para outro com toda naturalidade. E nenhum compositor se incomoda que outro adote qualquer de suas invenções. Não obstante, é verdade que temos uma certa aversão pelo uso de uma melodia por outro inventada.

Dispositivos rítmicos também são emprestados livremente. O Carmina Burana de Orff é inteiramente construído sobre processos rítmicos expostos por Stravinsky em seu Les Noces. E ninguém se incomoda.

Todavia, na música, tanto quanto nas outras artes, a convicção talvez seja de que, afinal, cada artista opera com um estoque infinito de ideias e meios acumulados pela humanidade, a que ninguém tem portanto direito legítimo de posse. Haydn não inventou a forma sonata. Apenas consolidou a contribuição de seus antecessores e contemporâneos. Cada Quarteto seu é um devedor a milhões de outras obras e autores. É um elemento de uma longa cadeia de acontecimentos artísticos que o precederam.

O que seria de Beethoven se não tivesse existido um Mozart, e Mozart sem Haydn, e Haydn sem Haendel e Bach, e assim por diante? Então a quem pertence essa ou aquela ideia, estrutural, harmônica, rítmica e mesmo melódica? O conceito de propriedade intelectual fica assim diluído. Obras e artistas passam assim a ser visualizados, não como indivíduos autônomos, mas como expressão privilegiada de um cosmos gestado pela humanidade.

Nessas condições, já não há o conceito de propriedade intelectual individualizada. E assim pouco importa, seja do ponto de vista da arte, seja do da moral, se foi Liszt ou Francisco Manuel da Silva quem copiou do outro. Principalmente se nos lembrarmos da qualidade duvidosa das obras resultantes.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p.


Créditos de imagem: estrombo.com.br

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