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Um leitor me aponta um equívoco sobre a gênesis da cantata-pastoril Acis, Galatea e Polifemo mencionada em artigo anterior nessa coluna [ver Cantatas italianas de um alemão que virou inglês: http://bit.ly/22mfaii.] De fato, há um drama-pastoril composto por Haendel dez anos mais tarde, provavelmente em 1718, denominado Acis and Galatea. Ambos foram baseados na mesma lenda siciliana extraída das Metamorfoses de Ovídio. Mas fica por aí a relação entre a ingênua cantata pastoril cantada em italiano e a muito mais pretensiosa ópera-pastoril, mais ao gosto inglês do que ao italiano. Talvez a razão para o engano do leitor mencionado seja devido ao atribulado histórico que percorreu a versão inglesa.

É preciso lembrar que durante a sua vida Haendel fez apresentar essa obra pelo menos umas setenta vezes, mais que qualquer outra. E, como era de praxe àquela época, por vezes introduziu correções ou adições. Houve um momento mesmo, no auge do prestígio da ópera italiana em Londres, que Haendel experimentou um cafoníssimo pastiche, com a inserção de árias cantadas em italiano adaptadas de obras da época em que esteve na Itália. Uma salada de estilos incompatíveis, mas que permitiram a Haendel acomodar o prestígio de vozes famosas, como as do castrato Sinesino e da super-prima-dona Strada, ao tradicional sucesso que já era o Acis and Galatea.

Mas da cantata italiana homônima apenas uma ária foi aproveitada, e o próprio Haendel, em sua versão final, expurgou todas essas inclusões espúrias, de forma que a versão de 1718 é bastante parecida com aquela de 1743, supostamente definitiva. Assim o resultado final é que existem de fato duas obras bastante distintas sem praticamente nada em comum no que diz respeito à música, representando mesmo extremos opostos quanto aos estilos percorridos por Haendel. Apenas a lenda que serve de enredo é compartilhada pelas duas obras. E além do mais o substrato literário também difere significativamente. John Gay, Alexandre Pope e Dryden são os responsáveis pelo texto inglês, o que literariamente esmaga o modesto, porém, competente, texto italiano.

Talvez o grande sucesso da peça inglesa seja a principal razão para o esquecimento em que caiu a surpreendentemente deliciosa Serenata a tre, em estilo e língua italianos. É possível que tenhamos sido influenciados por um aparente descaso do autor com sua primeira versão. Todavia a evidência é justamente contrária a essa conclusão, pois a versão italiana inclui uma orquestração muito mais rica e diversificada do que a inglesa. E o fato de não conter coros é atribuível à tradição preponderante à época na Itália, principalmente em Nápoles, para cujo público foi composta essa primeira versão. O leitor pode, portanto, adquirir as duas obras sem receio de redundâncias. Ou melhor, deve adquirir as duas obras.

A primeira gravação em disco compacto da versão italiana é simplesmente magnífica. Nesse caso Medlan dirige o London Baroque. Para o Acis inglês a versão indisputada é a de John Eliot Gardiner e o English Baroque Soloists, cuja única falha é a supressão do coro Happy We, que está na versão de 1743, mas não naquela de 1718. Essa interpretação foi recentemente transferida para disco compacto e parece ser a única existente nessa tecnologia, embora algumas outras versões existam em LP. Todavia, com a exceção da árida versão de Neville Marriner com a sua antisséptica Academia de São Martinho nos Campos, nenhuma outra é aceitável. Os solistas são excepcionais.

Um outro leitor, mozartiano fanático, corrige menção que fiz sobre o esquecimento em que permanece o encantador Adagio 580. Massin e Massin, afirma ele, na página 1.096 de seu livro sobre Mozart comenta essa obra. Em realidade não comenta, menciona apenas um vago comentário de Alfred Einstein calcado em Saint-Foix. Massin e Massin*, entretanto, deixa claramente transparecer que desconhece o fragmento. Apenas Saint-Foix, de fato, se detém de maneira apreciável sobre essa pequena obra-prima. Isso tudo confirma a condição da peça como tesouro a ser descoberto.

*Jean et Brigitte Massin, Wolfgang Amadeus Mozart, Librerie Arthème Fayard, Paris, 1970.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica.  São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 24/07/1988.

 George Frideric Handel

Acis, Galatea e Polifemo

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Delphine Galou

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