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Afinal o que veio primeiro, a voz ou o instrumento? A canção ou a tocata? A melodia ou o ritmo? Teria sido o canto dos pássaros o paradigma, ou o trote do búfalo? Afinal, usou a boca, as cordas vocais, ou as mãos e os pés para compor sua primeira sinfonia o homo sapiens? Ou teria sido o homo habilis?

Não creio que essas perguntas venham a ser respondidas jamais. Mas é certo que alguns vêm da canção, como Schubert, como Mahler, e outros vêm do rufar dos tambores, do choque das tábuas, das cordas estiradas, como Beethoven, como Brahms. E também é certo que é com a canção que o homem conversa com a morte e fala do amor.

No começo foram os trovadores da Europa Central, uma arte que sobreviveu marginalizada pelo poder da Igreja, mas já no século XIV teve a canção seu primeiro grande mestre, Guillaume de Machaut que, em paralelo à sua contribuição à polifonia, soube tão bem acalentar a canção. O próximo ponto culminante da canção só veio ocorrer na folclórica Inglaterra do século XVII com o gênio de Henry Purcell.

Em seguida, já no século XVIII, chegou a vez da França, com Charpentier e Couperin. Mas o pináculo dos pináculos só seria alcançado no século seguinte com Schubert, em Viena, em começos do século XIX. E depois viriam Schumann e Brahms e Wolf, para novamente, já no limiar do século XX, encontrar novos expoentes em Strauss e Mahler.

Fica assim simplificada, em parte, nossa tarefa de identificar os dez mais atraentes ciclos de canções, que definimos como sendo um conjunto de peças musicais para voz humana em solo, acompanhada por um ou mais instrumentos e que, embora sem uma estrutura rígida, se ligam entre si por um motivo, literário ou puramente musical.

A cantata italiana, litúrgica ou profana, do settecento não se enquadra devido à sua estrutura indissolúvel. Em princípio, não se ouve isoladamente um movimento de cantata com a mesma naturalidade com que escutamos um Lied extraído d’ A Viagem de Inverno de Schubert.

Em uma canção de Machaut a preocupação maior é com a expressão subjetiva; em uma cantata de Scarlatti ou Haendel, e mesmo Bach, é a estrutura sonora, a polifonia, que comanda a nossa atenção. Canção é emoção, cantata é intelecto. Embora, obviamente, essa afirmativa deva ser tomada com muita precaução. Basta lembrar que Gabrieli usou o vocábulo canzona para indicar suas mais intrincadas obras instrumentais polifônicas.

Não há nada mais delicioso na música Medieval do que as canções de Guillaume de Machaut, e desse imensamente generoso estoque escolho Le Lay de la Fonteinne, que contém doze Canções e Cânones. Mas muitas são as coletâneas de canções de Machaut que poderiam substituir essa particular escolha.

Do norte da França, Reims mais precisamente, e do século XIV saltamos sem muita cerimônia para a Inglaterra. De uma certa maneira Purcell resume a rica tradição inglesa da canção Renascentista; Byrd, Dowland, Blow etc. Aliás, desse último, uma coletânea qualquer extraída do Amphion Anglicus seria um eventual substituto.

Mas é impossível deslocar Purcell, embora não seja razoável acomodar qualquer conjunto de suas canções em qualquer organização que se aproxime de um ciclo. Somos assim obrigados a nos ater às arbitrárias mas magicamente lúcidas escolhas desse grande intérprete de Purcell que foi Alfred Deller, a primeira tomou o nome de Music for a while e a segunda de O Solitude.

De volta à França, já no século XVIII, escolhemos as Lições de Trevas de Charpentier, representante de uma eloquente mas breve tradição. E sei que muitos iriam preferir a obra similar de Couperin. O próximo grande cancionista só viria aparecer no século XIX, bem no começo. E é o maior de todos, por certo. De Schubert, sem maiores explicações, proponho A Viagem de Inverno, A Bela Moleira, verdadeiros ciclos, e O Canto do Cisne, apenas uma coletânea arbitrariamente organizada.

Sucumbo em seguida ao hiper-Romântico Vida e Amores de uma Mulher de Schumann. De Mussorgsky, escolho esse magnífico breve ciclo Canções e Danças de Morte; de Strauss, o seu testamento, As Quatro Canções Derradeiras; e para fechar com chave de ouro, de Mahler, o último cancionista, o seu imenso Kindertotenlieder.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p.

Kindertotenlieder

Kennet Woods

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