Em Cinema, Destaques

Por Ricardo Flaitt

No período histórico da formação dos Estados, na Idade Média, inicial transição entre o feudalismo rumo ao capitalismo, uma das questões para determinar a configuração sócio-política de um povo estabeleceu-se pela determinação das linhas fronteiriças.

Atualmente, o mundo, sob máxima globalização, os limites fronteiriços tornaram-se meros adereços cartográficos, uma vez que o Capital, quem de fato rege as nações, não possui pátria, nem fronteiras, nem língua, nem posição geográfica. O mundo tornou-se um só bloco, interligado, conectado, em que as decisões do Poder Econômico determinam as políticas e, consequentemente, a vida das pessoas.

A imagem icônica dos políticos, dos estadistas, dos representantes à frente de um povo diluiu-se frente ao poder do Capital. Os políticos, parte da estrutura do Estado, ainda existem, mas como pequenas engrenagens representativas de um sistema para “ordenar, manter e controlar a estabilidade” de povos a serem submetidos à exploração.

Em tempos que ideologias são produtos comprados em prateleiras de supermercados, políticos são peças movidas pelos interesses do Poder Econômico, que em nome do lucro, determinam a política e o modo de vida da população, geralmente ampliando a miséria de milhões de vulneráveis, para que uma minoria viva em perene estado de opulência.

O filme “As Confissões”, de Robert Andò, expõe as relações do poder do Capital financeiro, suas imposições sobre os destinos das nações e explicita o formato ainda mais cruel e selvagem da exploração sobre uma grande massa populacional.

De forma magistral, considerando o tema praticamente abstrato para se construir uma narrativa cinematográfica, sem recair no documentário, Andò criou uma trama em que um monge, Salus, da ordem dos cartuxos, é convidado pelo presidente do Fundo Monetário Internacional a participar de uma das reuniões do G-8, formado pelas nações economicamente mais poderosas.

O contraponto estabelecido por Andò, entre o monge cartuxo, ordem que é distanciada dos valores materiais, em meio a representantes de nações, regidos pela ganância desmedida do Poder Econômico, é determinante para o desenvolvimento da trama.

E é por meio dos diálogos entre o presidente do FMI e o monge que acontecem os grandes contrastes de valores: de um mundo que pensa ser possível comprar tudo, em conflito à uma filosofia de vida, em que deste mundo não se leva nada, que busca a relações humanas.

No embate desses dois mundos em “As Confissões”, emerge, na postura, e nas palavras, as diferenças no modo de compreender a vida. Para o mercado, se há uma razão no viver, não representa praticamente nada, é desprezível, mercadoria que pode ser comprada, vendida, descartada.

Seus deuses são projetados pelo o lucro, mesmo que à custa da miséria, da fome e da exclusão social de milhões de pessoas. A lógica do capitalismo não compreende o bem-estar do outro.

Para Salus, o monge, a passagem pelo mundo só encontrará sentido se as ações forem direcionadas para o bem-estar entre os seres humanos, contrapondo a “coisificação de tudo” imputada pelos valores capitalistas. O valor de Salus está no imaterial, na alma, em valores e sentimentos que dinheiro algum do mundo pode comprar.

O diálogo-síntese para mostrar que o Capital “coisifica tudo”, que tudo é mercadoria, que nada possui valor além do lucro, foi uma conversa entre o monge Salus e um representante do G-8, o mercador cita uma frase de um pensador grego, como metáfora do pensamento e cultura construído ao longo da história da humanidade.

Depois de reticência de silêncio na conversa, o representante do mercado diz ao monge que se trata de uma frase linda, profunda; porém, proveniente de um país falido. O país insolvente trata-se da Grécia, um dos pilares da civilização ocidental, que se encontra em colapso financeiro.

Para o Capital, questões como filosofia, ética, moral, educação, direito e tudo mais que envolva um movimento no sentido civilizatório resume-se a frases para citações em artigos ou para utilização em discursos.

Na prática, para o mercado, valores não são morais, mas monetário. Frases não significam absolutamente nada além de mais um instrumento para criar um perfil humano em um animal predatório, capaz de assistir, com indiferença, o espetáculo horrendo de milhões de pessoas morrendo de fome, morando nas ruas, “habitando” favelas, morrendo por falta de assistência médica, sem saneamento básico, dentre outros horrores que não precisam de guerra.

Não há padrão civilizatório para o Capital. Só há exploração desmedida. Em “As Confissões”, a sutileza da direção de Ardò ressalta a brutalidade do “modus operandi” do Poder Econômico, materializado nos posicionamentos, rituais, nos hábitos, valores, pensamentos e diálogos, constituídos em luxo, opulência, mas, ao mesmo tempo, em um grande vazio e crise existencial dos grande executivos e estadistas que, em realidade, são grandes office-boys de smoking do capital.

Se um dos mais nobres sentidos da arte é ampliar a compreensão do mundo, gerando consciência e transformação, Ardò, conseguiu construir uma grande obra, com equilíbrio entre a beleza das imagens e conteúdo, que nos deixa suspenso no ar mesmo depois dos créditos finais. Sem dúvida, configura-se entre os melhores filmes produzidos nos últimos anos.

   

As Confissões
Itália – França | 2016 | 108 min. | Drama
Título Original: Le Confessioni
Direção: Roberto Andò
Roteiro: Roberto Andò, Angelo Pasquini
Elenco: Toni Servillo, Daniel Auteuil, Pierfrancesco Favino
Distribuição: Mares Filmes

 

 

Assista ao trailer:

Brasil 247 [http://www.brasil247.com/]: 09/05/2017.

 

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Ricardo Flaitt. Historiador.

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