Em Destaques, Vida Nacional

Por Nelson Rodrigues dos Santos

Impensável abdicarmos da continuidade do esforço que os movimentos sociais e políticos, vêm destinando à denúncia das atuais reformas oficiais, iniciadas pela EC-95/2016, que estanca de vez os gastos públicos com o desenvolvimento social e econômico, da reforma previdenciária em debate e outras.  Mas igualmente imperioso, seria um esforço maior, mais contagiante e efetivo, de se ir além da denúncia dos engodos e retrocessos daquelas propostas de reformas, e intensificar a formulação, proposição e mobilização para as inadiáveis reformas, efetivamente de interesse de todos: a revisão do atual caráter do ajuste fiscal  e as demais reformas, como a previdenciária, a trabalhista, a fiscal, a tributária, a política, a eleitoral, a fundiária e outras, bandeiras históricas e populares a serem resgatadas e debatidas  democraticamente pelas grandes maiorias. Nosso país tem o privilégio de contar com intelectuais, técnicos, pesquisadores e estudiosos, de nossas universidades e instituições de pesquisa, amplamente reconhecidos e respeitados nas áreas de Economia, Atuária, Tributação, Direito Constitucional, Ciências Sociais, Ciências Políticas, História e outras, que já vem desmentindo e desmistificando as ditas reformas oficiais e alertando sobre seu retrocesso histórico. Grande parte deles vão além, e formulam consistentes propostas de reformas, estas sim, a favor da sociedade e do desenvolvimento, e muitas vezes, assumidas pelas suas próprias instituições, isoladamente ou em conjunto com outras.

Contudo, essas propostas de reformas progressistas, voltadas para as aspirações justas e direitos da esmagadora maioria da sociedade, que reconhecem a grave crise, a paralisia no desenvolvimento, a necessidade do ajuste receita-despesa, etc, e voltadas efetivamente para sua superação, não vem sendo,  didática e permanentemente, debatidas amplamente com todos os segmentos sociais, suas lideranças legítimas, suas entidades e suas representações políticas, partidárias e não partidárias, suas redes sociais, os parlamentares nas três esferas governamentais, os membros dos tribunais, setores acessíveis de formadores de opinião na mídia, etc. Obviamente isso demanda priorização e grande dedicação aos debates, confiança na participação e pactuações de propostas unitárias e fortes em cada etapa dos embates políticos, com vistas ao convencimento e pressão no poder legislativo. Esse espaço de ação e debates políticos, vem sendo mais assumidos pelas propostas geradas na elite financeira-empresarial hoje centrada no Ministério da Fazenda e Casa Civil e na grande mídia, mas que por si não explica todo o baixo acesso das propostas efetivamente democratizantes, progressistas e comprovadamente do interesse real e duradouro de mais de 90% da nossa população. Isto é: desde os sobreviventes e trabalhadores miseráveis até setores da classe média alta trabalhadora assalariada ou liberal ou empresarial, e passando pela massa de trabalhadores e autônomos pobres, e as classes médias baixa e média, também de trabalhadores assalariados, autônomos e micro-empresários. Todos dependentes do processo produtivo de bens e serviços. Como avaliar e intervir em tamanha discrepância?

Um dos desafios é o de avaliarmos, no devido peso e significado, as formas e alcance da hegemonia da globalização neoliberal e da financeirização dos orçamentos públicos, no mundo e em nosso país, incluindo os sinais de crescimento das suas contradições intrínsecas. Outro desafio mais brasileiro e não menos complexo e grave, é a desestruturação, pela nossa ditadura, da tendência histórica da relação sociedade-poder legislativo, com significativa perda da capacidade desse poder desenvolver sua face de caixa de ressonância da sociedade. É a nosso ver, a face mais retrógrada da estratégia de periferização e dependência do nosso desenvolvimento, que prossegue até hoje sob a égide do “presidencialismo brasileiro de coalizão”, engendrado ao ponto de abalar as raízes republicanas da relação Executivo-Legislativo e do Estado-Sociedade-Mercado. Outro grande desafio reside na fragmentação das lutas sociais pelos direitos constitucionais á saúde, educação, transporte, trabalho, previdência, moradia, terra e outros, desde os anos 90 até hoje. As lutas setoriais revelam-se imprescindíveis para aprofundar e resistir, mas isoladamente, vem permanecendo insuficientes, contra-hegemônicas e dando lugar á hegemonia mercadológica fortemente subsidiada por recursos públicos. Inserem-se no espaço da ausência das lutas sociais e militância mais unitárias e amplas por um projeto de nação, que em regra permanece substituído por projetos de poder e/ou de governo e/ou de segmentos e setores corporativos mais pesados, decorrentes e sob o manto do nosso presidencialismo de coalizão. Mais informações sobre estes e outros desafios fogem da pretensão deste artigo e encontram-se no texto “Processo Civilizatório versus Concentração Ilimitada da Riqueza e Mando na Sociedade e no Estado”, site dos 40 anos do CEBES:

Vejo na “via sacra” da implementação do SUS, exemplo contundente desta análise acima, aparentemente vem sendo a política pública que mais inclui, mas de que forma? – sua política setorial hegemônica, já no início do SUS nos anos 90, negou os 30% do OSS ao seu financiamento, depois retirou o orçamento previdenciário da base de cálculo do seu financiamento; desviou a CPMF para bancar pagamento dos juros da dívida pública; com a EC-29 colocou aos Municípios e Estados o maior peso no financiamento; depois negou os 10% da RCB, que compensaria parcialmente sua baixa contrapartida desde 2003 até o PLIP-321/2013; aprovou a PEC-358/2013 que reduziu ainda mais o financiamento federal; apresentou a MP-656/2014 abrindo para o capital internacional; e como se não bastasse, bancou o crescimento hegemônico do setor privado complementar pago por produção, com brutal desinvestimento nos próprios públicos; subsidiou inusitado crescimento do setor privado suplementar de planos privados(mercado); promoveu brutal terceirização/precarização dos recursos humanos nos serviços públicos; bancou vultosos empréstimos públicos subsidiados a hospitais privados de grande porte e de operadoras de planos privados; e por final a desastrosa EC-95/2016. Não dá para não subestimar que se trata da implementação  hegemônica de outro modelo de atenção á saúde que não o SUS constitucional: é a “cobertura universal por um arranjo público-privado”. SUS pobre para 75% da população sem recursos para adquirir planos privados, e 25% da população, segmentada por estratos sociais, consumidora de planos privados de saúde dos mais baratos aos mais caros, permanecendo usuários do SUS para materiais e serviços de saúde mais sofisticados e caros, com per-cápita total de gastos com saúde, entre 4 a 6 vezes maior do que o destinado aos 75%. Há projeto de serem criados planos privados ainda mis baratos, subsidiados e acessíveis a pelo menos parte dos 75% mais pobres. Este é o modelo real, em fase avançada de implementação, de inclemente redução do gasto público com serviços próprios, e substancial elevação das compras públicas de serviços privados e polpudos subsídios ás empresa fornecedoras de materiais e operadoras privadas de planos de saúde. Ainda assim, a luta social, assistencial e técnico-científica a favor dos direitos á saúde e pelo SUS constitucional, acumulando inclusive imprescindíveis “expertises” para a retomada do rumo inicial, vem sendo extremamente rica, válida e inabdicável. Mais informações sobre a história ado SUS, avanços, derrotas e desafios, que fogem da pretensão deste artigo, encontram-se no texto “SUS: a Dura Luta Contra a Hegemonia Neoliberal”, site dos 40 anos do CEBES2. Para finalizar, vale lembrar a coincidência: na idade similar dos 26 anos, hoje do SUS constitucional, o sistema de saúde inglês- NHS, que foi criado oficialmente em 1948, entre 1974 e 1976 já era paradigma internacional, inclusive para o nascente CEBES e movimento pela reforma sanitária brasileira. Mais ainda: desde os anos 80 (há 36 anos) o NHS, fustigado e arranhado pelo neoliberalismo thatcherista, sobrevive defendido pela população, tendo sido em 2012 o tema central da monumental homenagem da cerimonia de abertura das Olimpíadas de Londres.

1  http://bit.ly/2msmoBp

2 http//40anos.cebes.org.br/category/novas-ideias/

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Nelson Rodrigues dos Santos. Médico. Especialista em Saúde Pública. Professor na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

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