Em Destaques, Música

Lembro-me vagamente de um ensaio de Otto Maria Carpeaux* sobre os Concertos Brandenburgueses de Bach. Minha memória não me permite recuperar os argumentos de Carpeaux, mas estou seguro de que a sua conclusão foi que esse conjunto de seis concertos constituía a obra-prima da música. Carpeaux glorificava a imaginação criadora de Bach e sua superioridade infinita nesse gênero que ele identificava como concerto grosso. Eu tenho minhas dúvidas. Em primeiro lugar porque o permanente recurso ao ritornello como princípio básico do estilo concertato é, para dizer o menos, cansativo.

Talvez fosse justamente por causa da consciência dessa limitação que Bach recorreu a tão variada configuração instrumental. É claro que Bach é sempre Bach, mas colocar esse conjunto de obras acima de A Arte da Fuga, ou até mesmo d’A Oferenda Musical, para nos atermos à obra instrumental de Bach, é, certamente, falha de percepção.

Aliás, minha discordância com Carpeaux parte já de sua caracterização dos Concertos de Brandenburgo como modelo de concerto grosso. Por duas razões. Primeiramente, pela indecisão formal. Que instrumentos constituiriam o concertino do Terceiro Concerto? Pois é bom lembrar que cada uma das três partes é constituída de três violinos, ou três violas, ou três violoncelos. Cada voz, a seu turno, tomando a liderança. Esse dispositivo é muito mais próximo, digamos, das Fantasias de Purcell do que do concerto grosso à maneira que era então praticado na Itália.

Ainda menos exemplar é o Primeiro Brandenburguês no qual sete instrumentos assumem, cada um a sua vez, o status de solista. Mas o que define, sob tal aspecto, um concerto grosso é a solidariedade entre os instrumentos componentes da minoria segregada, o concertino, em aberto conflito com o ripieno, a maioria opressora. Mas já na abertura do primeiro movimento estão os oboés traidores, dando suporte às cordas que compõem o ripieno, em franca oposição às trompas que, em uníssono, assumem posição francamente dissidente. E não são aqui as trompas usadas da mesma forma que Haydn e Mozart o fizeram em suas serenatas e concertos solo?

É claro que o estilo concertato está presente, mas se Bach tivesse incluído essa obra entre suas Suítes para orquestra, o máximo que se poderia estranhar é sua insistência no destaque de certos instrumentos. E, como argumento final, menciono a inclusão desse longo quarto movimento, composto de uma sequência alternada de quatro movimentos, dois trios e até uma polonaise. E se essa inovação é tomada por muitos como apenas uma bizarrice de Bach, eu a considero como intencional aproximação formal com a suíte.

Mesmo o mais popular desses concertos, o Segundo, distancia-se da tradição do concerto grosso ao suprimir integralmente o ripieno do seu segundo movimento que é reduzido a um trio, embora encantador, para violino, oboé, flauta e baixo-contínuo (cravo e violoncelo). É verdade que os dois outros movimentos se enquadram bem na tradição fundamental do concerto grosso, apesar da exótica constituição do concertino com quatro instrumentos de registro agudo.

E será esse magistral Concerto nº 6, que tem duas violas como supostos componentes do concertino, um verdadeiro concerto grosso, se há nitidamente mais colaboração entre as duas violas e as demais cordas do que conflito? Eu aproximaria essa obra, do ponto de vista formal, mais da Sinfonia Concertante de Mozart para violino e viola do que de um concerto grosso de Corelli, ou Vivaldi, pois é mais importante o diálogo entre as duas violas do que a oposição desse grupo às demais cordas.

Finalmente, devemos notar que em todos os seis concertos o estilo concertante é inteiramente abandonado nos movimentos lentos onde as soluções ou se assemelham àquelas adotadas por Bach em seus Concertos para violino solo, ou àqueles extraídos de Sonatas da Chiesa e usadas pelo próprio Bach em sua música de câmera.

Toda essa discussão é, obviamente, apenas acadêmica. Nesse momento estou ouvindo os ensaios de Casals para a gravação desse conjunto completo com o pessoal do Festival de Marlboro, e duvido que ele tivesse alguma preocupação com essa questão. Se os Brandenburgos resultam ou não de suposta intenção de Bach de estabelecer um modelo, ou mesmo um inventário, do estilo denominado concerto grosso. E até mesmo se devem ou não ser classificados como pertencentes a essa categoria.

Apesar de reconhecer a trivialidade da discussão, talvez seja oportuno recuperar, embora brevemente, alguns fatos históricos, nem que seja apenas para neutralizar as montanhas de asnices que são encontradas em capas de discos e comentários de críticos de música que, aliás, frequentemente aparentam limitar sua insaciável busca de conhecimento às mesmas capas de discos e à História da Música de Carpeaux. Bach teria dedicado essa coleção de obras instrumentais ao Margrave de Brandenburgo porque teria percebido então o enfraquecimento de sua posição em Cöthen, com o casamento do Príncipe de Anhalt-Cöthen com alguém insensível à música.

O seu desconhecimento do gosto pessoal do Margrave talvez possa ser responsabilizado pela imensa diversidade de ritmos, timbres e textura contidos nessas seis obras. Por outro lado, também concorda a maioria dos musicólogos com a conclusão de que esses concertos não foram compostos com a finalidade da oferenda ao Margrave, pelo menos na sua totalidade, mesmo porque a pequena orquestra de Brandenburgo não dispunha da variedade e da qualidade de instrumentos exigidos.

Foram, portanto, essas obras, provavelmente compostas para ocasiões distintas, somente incluídas em coletânea por força de acontecimento casual. É assim que devem ser saboreadas. Como um conjunto de obras independentes, incisivas, de textura riquíssima e colorido brilhante. Enfim, obras típicas de Bach.

Outro fato que não pode deixar de ser mencionado é a própria indiferença de Bach para com essas obras. Após o envio das partituras para o Margrave de Brandenburgo, Bach nunca mais as olhou, senão para reaproveitá-las integralmente, como fez com o Quarto e Quinto da série, transformando-os em Concertos para cravo e orquestra, o que, aliás, constitui mais uma evidência de que o âmago desses concertos não é a fórmula concerto grosso. E muitos dos demais tiveram alguns dos seus movimentos também reaproveitados. Essa atitude de Bach é completamente diversa daquela que teve em relação às suas obras preferidas, desde o Primeiro Livro d’O Cravo Bem Temperado, até A Arte da Fuga que não apenas procurou publicar, como também manteve intocadas.

Minha preferência continua solidamente com Gustav Leonhardt e o grupo de solistas que o acompanha há tanto tempo, pela justeza dos ritmos e pela transparência na textura, tão importante em Bach. Se o leitor for um desses fanáticos pelo colorido então a versão de Hans-Martin Linde com o Cappella Coloniensis é recomendável. Hogwood, Kuijken e Harnoncourt oferecem versões elogiáveis. Também o Collegium Aureum está razoável. Alguns saudosistas, como eu, encontram espaço para aquelas versões históricas, senão antológicas, como as de Busch, a de Kousevitzky e a de Klemperer, que acabo de encontrar reeditada aqui nos Estados Unidos, de onde escrevo este artigo. E, obviamente, um espaço também deve ser reservado para o Casals de Prades, ou o de Marlboro. E para Münchinger, em sua primeira gravação.

17/08/1986

*Otto Maria Carpeaux, Uma Nova História da Música, Rio de Janeiro, José Olympio, s/d

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 17/08/1986.

Johann Sebastian Bach

BWV1079 Musical Offering

Hans-Martin Linde

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