Em Análises e Reflexões, Destaques

Por Redação

Infelizmente ainda pouco conhecida no Brasil, Chantal Mouffe é uma das mais importantes teóricas da política contemporânea. Nascida na Bélgica, escreveu o clássico “Hegemonia e estratégia socialista”, com o cientista político argentino Ernesto Laclau, com quem foi casada. O livro, publicado em 1985, somente chegou ao Brasil em 2015 pelas mãos da editora Intermeios.

Entusiasta dos novos partidos-movimento surgidos nesse início do século XXI como o Podemos, na Espanha, e a France Insoumise, em França, Mouffe os caracteriza como “populismos de esquerda”.

Esses populismos de esquerda podem ser identificados com aquilo que Mouffe entende por “democracia radical”, ou seja, a articulação das demandas da classe trabalhadora com aquelas outras dos novos movimentos sociais como a luta contra o machismo e o racismo, por exemplo. Tudo isso sob a linguagem do nacionalismo.

O entusiasmo é recíproco. Tanto Pablo Iglesias, líder do Podemos, como Jean-Luc Mélenchon, da France Insoumise, já demonstraram por diversas vezes sua admiração pela belga.

Na entrevista, Mouffe defende a ideia de que para combater o populismo de direita de Marine Le Pen, faz-se necessário um populismo de esquerda como o de Mélenchon. Theófilo Rodrigues

 

Frente à hegemonia neoliberal a senhora propõe a definição de uma nova estrategia política para a esquerda…

Antes de discutir orientações estratégicas, falta fazer uma análise de conjuntura. Eu me inspiro em Maquiavel que, como observou Louis Althusser, inscreve-se sempre dentro da conjuntura. Tento entender as questões do momento e é de lá que eu tento desenvolver uma perspectiva. É por isso que sou contra a filosofia normativa. Filósofos políticos tendem a fazer grandes elaborações para explicar como o mundo deveria ser, independentemente do contexto. De minha parte, eu tento basear as minhas teorias sobre a realidade da época.

A minha análise é que nós vivemos hoje em um “momento populista” marcado pelo surgimento de movimentos que são designados dessa maneira. Falta esclarecer primeiro o que quero dizer com “populismo”. Na boca da maioria dos políticos e dos comentaristas, a palavra “populismo” é sinônimo de “demagogia”. A acusação de “populismo” é a arma daqueles que defendem o status quo para desqualificar aqueles que querem colocá-lo em questão.

De minha parte, eu adoto a perspectiva de Ernesto Laclau que em seu livro, A razão populista, explica que o populismo não é uma ideologia ou uma doutrina, mas uma maneira de estabelecer uma fronteira política. Para mim, a política consiste sempre em definir o limite entre um “nós” e um “eles”. Esta fronteira pode ser construída de formas muito diferentes. Para os marxistas, por exemplo, a fronteira é entre o “proletariado” e a “burguesia”. Para os populistas, é entre “os de baixo” e “os de cima”, entre “o povo” e o establishment. O que explica essa efervescência de movimentos “anti-sistema”? Todos, em diferentes formas, são reações de rejeição que eu chamo a pós-democracia. Hoje, a democracia funciona num vazio, pois ela foi separada da soberania popular. A democracia foi removida do vocabulário político, porque é a principal inimiga do neoliberalismo que quer estabelecer a soberania do mercado e da tecnocracia. Essa hegemonia neoliberal gera revolta em mais e mais cidadãos. Um dos slogans dos Indignados na Espanha era: “Temos voto, mas não temos voz”. Essa ilusão do consenso é o que chamo de pós-política.

Para mim, a democracia deve necessariamente ter um caráter agonístico, isto é, a oportunidade de escolha entre diferentes projetos. Se não há diferença fundamental entre os programas apresentados pelos partidos de centro-direita e os da centro-esquerda, há de fato um voto, mas sem voz, porque não há possibilidade de escolha. Esse ‘consenso no centro’ tem dominado a cena política na Europa ao longo das últimas quatro décadas. Os movimentos chamados de “populistas”, que em sua maioria são de direita, quebram essa ilusão do consenso. É certo que eles querem recuperar a democracia, mas incluindo-a em uma tradição etno-nacionalista que não corresponde ao ideal da esquerda.

A esquerda defende a soberania popular, mas a fim de promover os ideais de igualdade e justiça social. A estratégia da esquerda deve levar a sério essa demanda democrática de todas essas categorias populares que sentem que não têm voz. Para isso, ele deve adotar um vocabulário que a permita formular essa reivindicação de soberania em uma linguagem que não seja como a do populismo de direita de tipo etno-nacionalista. Em suma, se a esquerda quer recuperar a democracia, deve desenvolver um populismo de esquerda.

 

Quais as diferenças entre o populismo de direita e o populismo de esquerda? Marine Le Pen fala, também, da justiça social…


Sim, mas apenas para os nacionais. Essa é a grande diferença! A diferença fundamental entre o populismo de esquerda e o populismo de direita é como o povo é construído. A população é uma categoria sociológica. Ao contrário, o povo é uma categoria construída, uma categoria política. A maneira pela qual Le Pen construiu um povo é muito diferente da forma como Jean-Luc Mélenchon construiu um povo.

Toda minha reflexão se inscreve dentro da perspectiva teórica que desenvolvi com Ernesto Laclau em “Hegemonia e Estratégia Socialista”, um livro que foi publicado em 1985 e que tem influenciado o Podemos. Neste ensaio, nós fizemos uma crítica do que chamamos de concepção “essencialista” da política. Nós escrevemos “Hegemonia e Estratégia Socialista”, pois tanto a esquerda social-democrata quanto a esquerda marxista tradicional pareciam incapazes de compreender a especificidade dos novos movimentos sociais que se desenvolveram desde maio de 68: por exemplo, o feminismo, o movimento ambientalista, lutas anti-racistas contra a discrminação dos homossexuais. Por que esses novos movimentos e a esquerda tradicional se desconectaram?

Ao abordar esta defasagem, nós compreendemos que havia um problema de natureza teórica; estas novas lutas não poderiam ser interpretadas em termos de luta de classes, o que impediu que elas fossem compreendidas, em particular, pelos marxistas. Há muitas formas de essencialismo: o marxismo é baseado em “um essencialismo de classe”, no qual identidades políticas dependem da posição do ator social nas relações de produção, relações que determinam sua consciência.

De acordo com Laclau e eu, não existe uma identidade política pré-definida, o “nós” na política não existe anteriormente à sua construção. O “nós” de uma estratégia populista de esquerda não é a representação de interesses coletivos pré-existentes. Existem demandas democráticas relacionadas com interesses econômicos, mas também toda uma outra série de demandas democráticas que não são de ordem econômica. É importante reunir um conjunto de demandas heterogêneas, que podem entrar em conflito umas com as outras, para criar uma vontade coletiva, um “nós”. O desafio é criar um “nós” que reconheça as diferenças. O povo do populismo de esquerda, como o de direita, é heterogêneo. O povo de Marine Le Pen não é homogêneo, mas consegue se unir através da criação de um “nós” que é definido pela diferença com “eles”, que são os imigrantes.

Um “nós” é sempre definido em relação a um “eles”. Mas “eles” não são necessariamente os “imigrantes”. Pode ser qualquer outro, como as forças do neoliberalismo. A diferença fundamental entre o populismo de esquerda e de direita é a natureza do “eles”. Em todo caso, o “nós” e o “eles” não são a representação de interesses que já existem. O Podemos compreendeu bem e não fala apenas com as pessoas que votam ou se identificam com a esquerda. O movimento também busca convencer os eleitores do Partido Popular, para criar uma vontade coletiva, um “nós” que seria transversal.

A experiência do Podemos é possível na França?


Em ambos os casos, desenvolvem-se um populismo de esquerda, mas as circunstâncias são diferentes. Não há nenhum partido de direita populista como a FN na Espanha. O Podemos nunca teve que enfrentar um outro tipo de movimento populista. Eles têm uma vantagem sobre Jean-Luc Mélenchon que na França tem que enfrentar o partido de Le Pen. Uma vez que um movimento populista de direita se estabelece, é difícil competir.

No entanto, este deve ser um dos objetivos da esquerda.

Eu discordo profundamente daqueles que acreditam que o eleitorado da FN está perdido por ser intrinsecamente “racista” ou “sexista”. Devemos nos perguntar por que esses eleitores se identificam com a FN. Em minha opinião, o abandono das classes populares pela social-democracia explica o sucesso dos populismos de direita. Os social-democratas aceitaram a tese de que não há alternativa à sociedade neoliberal. Se não há alternativa, significa que as decisões de natureza política não são realmente políticas, mas técnicas e devem ser resolvidas por especialistas que organizam o status quo. Isso é o que chamo de pós-política.

Além disso, se a gente aceita a ideia de que não há alternativa à globalização neoliberal, a gente não pode alimentar um discurso que é para os perdedores desta globalização. Isto é o que acontece na maioria dos países europeus e explica a divisão entre vencedores e perdedores da globalização. Isto criou um terreno muito favorável para o populismo de direita que pretende oferecer uma alternativa e dar voz ao povo. Assim, eles conseguiram se apropriar de uma série de demandas que, para mim, são fundamentalmente democráticas. Devemos reconhecer a importância dessas demandas. Estou chocada em ver na França o esforço de alguns intelectuais para tentar provar que Marine Le Pen é “fascista” ou “anti-republicana”. Eu não concordo com este tipo de vocabulário, porque é uma forma de evitar entender o que há de novo neste tipo de movimento. É mais fácil para os partidos social-democratas denunciar um suposto retorno dos anos 30 ou um racismo intrínseco das categorias populares, do que questiona-las. É importante para a esquerda fazer uma análise real do sucesso dos populismos de direita, sem cair em uma condenação moral, estéril e contra-produtiva.

A senhora é uma das principais representantes do “pós-marxismo”. Isso significa que não acredita na luta de classes? A seu modo, a senhora também propõe abandonar as classes populares em favor das minorias, como Terra Nova?

É uma interpretação tendenciosa que fizeram de “Hegemonia e Estratégia Socialista”. A luta de classes existe, mas não podemos reduzir tudo a ela. Não questionamos a existência de antagonismos relacionadas com a economia e as relações de produção. O que colocamos em questão com Laclau, é a filosofia da história, a metafísica marxista do progresso e da ontologia privilegiada da classe trabalhadora.

Nós combatemos também a ideia de uma subjetividade particular relacionada à condição do trabalhador. Nesta perspectiva marxista, o trabalhador deve ter necessariamente uma consciência socialista e se ele não tem, é uma falsa consciência. Thomas Franck, em “Por que os pobres votam na direita?”, mostrou que essa teoria essencialista não corresponde a uma realidade muito mais complexa.

Em “Hegemonia e Estratégia Socialista”, desenvolvemos também a ideia de que um projeto socialista não pode consistir apenas na defesa dos interesses da classe trabalhadora. Ao lado da demanda legítima por justiça social, há toda uma série de outras demandas democráticas que têm a ver com os antagonismos que não estão localizados na economia: a luta contra o racismo e o sexismo em particular. É necessário articular essas diferentes demandas. Por isso, propomos a reformulação do ideal socialista em termos de radicalização da democracia. Devemos estender o ideal democrático para áreas que antes não estavam projetadas como políticas. Portanto, nunca esteve em questão abandonar as classes populares.

A senhora sublinha a importância do lider carismático…

A articulação entre as lutas não significa convergência. Todas as lutas que existem não convergem naturalmente. A articulação implica uma transformação. As lutas feministas, por exemplo, devem considerar as lutas dos trabalhadores. Na medida em que o povo é heterogêneo, falta um princípio articulador para a agregação. Na maioria dos casos, a pessoa do líder tem um papel importante. Ele permite que o ‘nós’ se cristalize em torno de emoções comuns, para identificar um significante hegemônico. Em casos específicos, uma luta concreta pode ser suficiente como foi o caso, por exemplo, do movimento Solidariedade, na Polónia. A luta foi muito além da pessoa de Lech Walesa. Mas, na maioria dos movimentos políticos mais importantes que existiram, o líder sempre foi decisivo. Líder carismático não significa necessariamente líder autoritário. No caso de Pablo Iglesias, a liderança não é incompatível com uma importante democracia interna.

A senhora critica o “etno-nacionalismo” de Marine Le Pen. A esquerda e a nação são incompatíveis?

Eu defendo a idéia de um patriotismo de esquerda porque acredito que há um forte investimento libidinal na identidade nacional. Deve ser levado em conta. É um erro demonizar a nação ou a tornar um instrumento fascista. Tenho sido muitas vezes crítica de Habermas que defende o abandono da identidade nacional em favor de uma identidade europeia pós-nacional. Eu sempre pensei que isso seria impossível, pois a identidade nacional é muito importante para as pessoas. O erro de toda uma parte da esquerda é pensar que o compromisso com a nação necessariamente leva a formas negativas de nacionalismo. Eu acredito, ao contrário, que este compromisso pode ser mobilizado de uma forma muito progressista.

O nacionalismo escocês, por exemplo, é um nacionalismo que está ancorado à esquerda. Ele não visa excluir, mas, ao contrário, em criar um “nós” inclusivo em torno da identidade escocesa. Neste caso, é muito claro que “eles” são os ingleses. O Partido Conservador nunca foi uma maioria na Escócia, mas os escoceses foram forçados a aceitar uma política conservadora por causa de seu pertencimento ao Reino Unido. Há em Jean-Luc Mélenchon um modo de se referir à nação que eu acredito ser um autêntico patriotismo de esquerda. É importante considerar as emoções na política.

Ignorar as emoções é uma das principais falhas da esquerda e uma das razões pelas quais ela não consegue entender o sucesso do populismo de direita. Ao contrário da direita, a esquerda é muito racionalista e se recusa a mobilizar as emoções coletivas, que eu chamo de ‘paixões’. Deve-se reconhecer que os seres humanos não são apenas seres racionais, mas também passionais. Na política há uma forte dimensão emocional, pois as emoções coletivas têm um papel central na criação de um “nós”. Isso explica a importância do líder carismático capaz de mobilizar paixões.

Publicado originalmente em Le Figaro, em 11.04.2017

 

Tradução: Theófilo Rodrigues – Professor de Teoria Política Contemporânea no Departamento de Ciência Política da UFRJ.

O Cafezinho [http://www.ocafezinho.com/]: 22/04/2017.

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