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Dizem que morreu virgem, aos setenta anos, um verdadeiro santo, ingénuo e puro, um visionário, talvez possuído dessa parvoíce que nos exaspera, mas que também nos emociona em um Sobral Pinto. Manuel de Falla foi o maior compositor espanhol dos últimos tempos. Foi também um dos mais parcimoniosos de toda História da Música. Sua obra completa, se esquecermos a inacabada cantata, chamada Atlântida, caberia em quatro ou cinco discos. Apenas Alban Berg, de todos os seus contemporâneos que merecem menção, foi assim tão frugal. É também notável que, da mesma maneira e na mesma época que Sibelius, tenha De Falla caído em completa esterilidade quando parecia justamente ter alcançado sua completa maturidade. Mas não tem a desculpa do monolítico Sibelius. Sua música incorporou cedo as inovações rítmicas de Debussy e o brilho colorístico de Ravel, seus conselheiros e amigos. Também sua harmonia foi naturalmente ousada, pois, afinal de contas era um espanhol. E poucos compuseram música mais sensual que seu Chapéu de Três Pontas ou seu O Amor Feiticeiro. Como foi então que deixou esgotar, assim tão cedo, sua inspiração?

É preciso também não esquecer que a própria Espanha, após uma exuberante produção na Idade Média e respeitável atividade musical no Renascimento, após Soler em meados do século XVIII tomba em inexplicável esterilidade, ressurgindo praticamente já no despontar do século XX, com De Falla e seus contemporâneos menores, Granados e Albéniz. Em realidade, a recuperação da música espanhola começa com o esforço do catalão Pedrell, o primeiro mestre de De Falla e competente musicólogo que editou a obra de Victoria e Cabezón, os dois maiores gênios da música Renascentista da Espanha. Mas as composições de Pedrell são pouco convincentes apesar de sua profunda compreensão do processo artístico.

De Falla inicia sua carreira de fato com uma ópera, A Vida Breve, a primeira obra espanhola de algum valor, nessa categoria. É verdade que levou muitos remendos e cortes, por influência de Debussy, Ravel, Dukas e outros grandes mestres que De Falla veio a encontrar em sua longa e profícua estadia em Paris. A gravação padrão dessa exuberante ópera dramática de enredo simplório é a de Frühbeck de Burgos com a Orquestra Nacional da Espanha e Victoria de los Ángeles, no papel central. Simplesmente magistral. Apesar do cuidado, a versão de Navarro com a Sinfônica de Londres, a fenomenal Berganza e Yepes, não chega perto. Seria, entretanto, mais tarde, já em Paris, que De Falla viria a compor o conjunto de Fantasias que viria coroá-lo de êxito. Em primeiro lugar, a maravilhosa sequência de Sete Canções Populares Espanholas, que miraculosamente resume toda a Espanha com uma densidade que ele próprio jamais voltaria a alcançar. Que o leitor se apresse e corra para a loja de discos mais próxima, pois foi lançada no Brasil a interpretação de Berganza com Yepes. Simplesmente indescritível. Feche os olhos ao ouvir o disco e sentirá o aroma da Andaluzia. No verso, encontrará o leitor as Treze Canções Espanholas Antigas, compiladas e arranjadas por García Lorca. E que se prepare para algumas lágrimas. Não há como não se emocionar. Outra gravação das Sete Canções Populares de grande força expressiva é a de Barrientos, com o próprio De Falla ao piano, Victoria de los Ángeles é menos feliz, mas aceitável.

Em seguida, De Falla compôs o ballet O amor Feiticeiro, e, logo depois, O Chapéu de Três Pontas uma pantomima musical. Ambos foram sucessos imediatos em Paris. E são, em realidade, obras de extrema engenhosidade harmônica e virtuosismo colorístico. A gravação dessa última peça, recentemente editada no Brasil com Ozawa, é irrepreensível, mas prefiro, pelo brilho radioso, a versão de Previn com a Pittsburgh e von Stade. Mas se o leitor é um verdadeiro apreciador, que procure localizar a interpretação de Rodzinski com a Filarmônica Real. Ansermet e Frühbeck de Burgos são também intérpretes aceitáveis. Para O Amor Feiticeiro o paradigma é Giulini com Los Ángeles e a Philharmonia. Mas Ansermet com sua Suisse Romande não fica atrás. Outras versões alternativas aceitáveis são Frühbeck de Burgos com a Nova Philharmonia e Navarro com a Sinfônica de Londres.

Foi ainda em Paris que De Falla compôs sua Fantasia para piano e orquestra denominada Noites nos Jardins da Espanha, uma mescla de ritmos andaluzes e de sonoridades parisienses. Mais uma pequena obra-prima. Alicia de Larrocha e Sergiu Comissiona dirigindo a Suisse Romande, oferecem o padrão pelo qual as inúmeras interpretações devem ser avaliadas. A começar por Haskil com Markevitch e Novaes (a nossa Guiomar) com Swarowsky.

Em um plano pouco inferior estão as gravações de Soriano com Argenta, Rubinstein com Ormandy e Soriano com Frühbeck de Burgos. De volta à Espanha, compôs De Falla El Retablo de Maese Pedro, sobre um tema do Dom Quixote, onde é perceptível certo declínio se comparado com o vigor de suas obras parisienses. A versão antológica dessa ópera miniatura é aquela de seu discípulo Halffter com a Orquestra do Teatro dos Campos Elísios. Entretanto, o leitor será mais bem servido com a versão de Argenta com a Nacional da Espanha ou ainda com a de Dutoit e um conjunto instrumental parisiense.

Em seguida, De Falla veio a compor uma peça extremamente ascética, como também fizera Stravinsky, nessa mesma época com seu Concerto para cravo, flauta, oboé, clarineta, violino e violoncelo. Teve um grande intérprete em Puyana ao teclado e Mackerras na regência. Outros intérpretes correntes são o próprio De Falla e Veyron-Lacroix. O primeiro apenas por razões históricas seria recomendável e o segundo só se for de todo impossível obter a versão de Puyana. Gravações não encontráveis há muito tempo, mas que seriam satisfatórias são as de Kipnis e de Galling. O pouco que escreveu para piano foi gravado com convicção por Alicia de Larrocha.

E assim foi De Falla. Exauriu-se como se tivesse um pequeno volume de ideias musicais. E não podendo se repetir, como todo grande artista moderno, escolheu a parcimônia e a esterilidade prematura. Escreveu apenas sete obras, e algumas curtas peças para piano, em toda sua vida, exatamente as que comentamos aqui, e todas elas são um sucesso permanente.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 02/02/1986.

Manuel de Falla

La vida breve

Orquestra Nacional de España

Rafael Frühbeck de Burgos (Regente)

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