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É possível imaginar a surpresa que teriam Bach ou Haendel se – por uma magia qualquer, a máquina do tempo de Wells, por exemplo – fossem transportados para a nossa época e viessem a observar que praticamente tudo o que compuseram não somente havia sido preservado, mas muito mais que isso, era ouvido e admirado por centenas de milhões de indivíduos espalhados por toda a superfície da Terra. Qual teria sido a expectativa desses senhores quanto à própria imortalidade? Bach era um luterano convicto, religião em cujo cerne está o impenetrável dogma da predestinação, tão claramente transparente em sua música, enquanto Haendel era um fervoroso cidadão do mundo. Ambos adotavam a prática, aliás corrente à época, do empréstimo abundante de movimentos e temas de obras precursoras, principalmente daquelas de suas próprias autorias. Esse hábito parece indicar que não esperavam que a obra predada viesse a sobreviver.

Compositores de gerações precedentes, como Monteverdi e Schütz costumavam reservar os últimos anos de suas vidas para a tarefa de seleção e adequada organização de suas melhores obras, com o evidente propósito de preservação para a posteridade. Bem, Bach também dedicou grande esforço em seus últimos anos de vida produtiva à elaboração e preservação de ideias musicais. O conjunto de obras ditas didáticas, tais como A Arte da Fuga e O Cravo Bem Temperado, representam um esforço de organização que só pode ser compreendido se a intenção houvera sido de preservação. Mas Haendel mesmo em seu esforço tardio para a composição de seu oratório O Triunfo do Tempo e da Verdade não faria muito mais do que manter sua atividade como empresário e compositor.

Em realidade, eu não ficaria surpreso se fosse encontrado um documento de autoria de Bach ou Haendel em que o artista afirmasse que seus esforços individuais para preservar suas partituras fossem inteiramente devidos à uma atitude pragmática que visava a reapresentação dessas obras ou mesmo o simples reaproveitamento de algumas parcelas em novas composições, pois afinal era isso mesmo que acontecia com grande frequência.

Há exemplos de árias de óperas que são transferidas para pastorais, transformadas em coros de hinos luteranos, terminando como movimento de um concerto para oboé. E o mesmo pode acontecer no sentido inverso. Bach toma o movimento orquestral mais densamente estruturado de suas suítes e consegue encaixar um conjunto ainda mais denso de vozes humanas para constituir um dos mais expressivamente jubilantes coros de sua autoria. E isso sem suprimir praticamente nenhuma nota da peça original. Mas não teria ele composto um novo coro se soubesse que essas duas obras, redundantes em parte, estariam, uma ao lado da outra, nas estantes de toda a humanidade?

Haendel, sempre que uma ária tinha um grande sucesso popular, procurava não reaproveita-la imediatamente, mas há exemplos de óperas suas que foram inteiramente desmanteladas, como fazem os ladrões de automóveis, e seus componentes reaproveitados integralmente. É o caso de Athalia, por exemplo. Não obstante nenhum melômano que se preze pode deixar de adquirir a recente gravação dessa maravilhosa obra com Hogwood e a Academia de Música Antiga, embora venha a reconhecer uma melodia, vez por outra, que já ouviu em algum outro lugar.

Não posso deixar de recomendar também a recente reedição em CD do oratório mencionado acima O Triunfo do Tempo e da Verdade, com Darlow e o Coro e Orquestra Haendel de Londres, que, a despeito da data tardia 1757, contém música composta principalmente em 1707 e 1737.

Constitui um fenômeno mal compreendido o súbito desaparecimento dessa prática já na geração seguinte, Haydn e Mozart apenas ocasionalmente reaproveitaram um motivo musical próprio ou alheio. E quando o fizeram foi como uma homenagem à obra original. E Beethoven ou Schubert jamais pensariam em reaproveitamento, apesar do conceito de plágio ainda não existir à época. Eis aí um dos mistérios da música ocidental.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 08/05/1988

Georg Friederich Händel

O Triunfo do Tempo e do Desengano

Natalie Dessay, Emmanuelle Haim

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https://www.youtube.com/watch?v=YT-0XefPO3Y


Imagem: rider.edu

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