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Por vezes, por uma feliz e rara combinação de fatores ótimos, a indústria do disco nos oferece uma gravação perfeita. Não bastam excelentes interpretações, condições técnicas, obras geniais. É preciso que a harmonia entre todos os partícipes seja perfeita. Somente quando o ajuste entre todos os elementos constituintes for absoluto, é que um desses acontecimentos raros ocorrerá. Uma gravação em mil, talvez nem isso, alcançará esse nível de perfeição. Foi com dificuldade que consegui identificar, em disco compacto, uma dezena dessas joias do acaso.

Começarei com essa perene e exemplar produção da Sociedade Camerística de Lugano sob a direção inigualável de Edwin Loehrer dos Madrigais Guerreiros e Amorosos de Monteverdi. Refiro-me ao CD singular que contém oito desses madrigais exemplares. Nunca o sol da Itália foi mais radioso, e ninguém percebeu tão bem quanto Loehrer a estreita correlação dessas obras com a nascente ópera, ou melhor, com o estilo representativo. É uma gravação de 1966, mas nada deve às melhores digitais dessa nossa década.

Em seguida passamos para uma gravação bastante recente. É de 1978 a magnífica interpretação das Lições de Trevas da Quinta-Feira Santa de Charpentier pelo Concerto Vocale sob Jacobs. Esse conjunto, é bom lembrar, é constituído por artistas que, além de sua reconhecida proficiência como intérpretes, são verdadeiros musicólogos. Além de Judith Nelson e René Jacobs, soprano e contratenor, lá estão o incomparável Wieland Kuijken com sua viola da gamba baixo de sete cordas do século XVIII; William Christie, criador e diretor do excelente Ars Florissant, ao órgão positivo; e Konrad Junghänel, dessa vez com a teorba de quatorze cordas. É uma universidade de música antiga, excelsa não apenas na concepção musicológica correta, mas antes de tudo na exaltação expressiva. Um disco milagroso.

Foi arrebatado traiçoeiramente do convívio dos homens em 1950 o mais brilhante jovem pianista de sua época, com apenas trinta e três anos de idade, Dinu Lipatti. Felizmente deixou-nos um diminuto, mas glorioso tesouro de gravações. Dessas, foram incluídas em um único disco compacto as mais brilhantes interpretações suas de Bach, Scarlatti, Mozart e Schubert. Uma verdadeira síntese de música ocidental para teclado. A Partita em Si Bemol Maior de Bach, além de quatro arranjos de obras diversas, entre elas o coral Jesus Alegria dos Homens. De Domenico Scarlatti, as cativantes KK. 380 em Mi Maior e KK. 9 em Ré Maior. De Schubert, dois Improvisos. E, enfim, de Mozart, a sua sublime interpretação da KK. 310 em Lá Menor.

Mas há uma falha na brevíssima discografia de Lipatti, falta Beethoven. E é um artista de caráter inteiramente distinto que encontramos para suprir essa lacuna. Refiro-me à visão lírica, imensamente poética de Kempff na Hammerklavier Op. 106, em conjunto com a Tempestade. Nessa seleção, essa será talvez a única escolha que poderá provocar objeções. Haverá melômanos que poderão até mesmo preferir outras interpretações da Hammerklavier. E eu concordaria que sinto uma atração magnética pelo rigor férreo de Backhaus, ou pelo equilíbrio dramático de Gilels e sua simples beleza sonora. Haverá ainda aqueles que preferirão a robusta impetuosidade de Brendel ou o depurado Romantismo de Arrau. Todavia, nenhuma delas contém a magia, a transcendência sobre o puramente intelectual, que só Kempff empresta tão consistentemente a esse pináculo da música ocidental.

Em seguida vamos a esse disco maravilhoso de Schwarzkopf, que tantas vezes já mencionei nesse espaço. São Canções de Schubert e de Mozart, as primeiras com Fischer e as de Mozart com Gieseking, ao piano. Esse é um disco que ninguém tem o direito de não possuir. Tais alturas são alcançadas por uma infinidade de coincidências. Até a temperatura deveria ser a ideal para uma ótima performance das cordas vocais de Schwarzkopf e o preciso afinamento do Bechstein usado por Fischer, imagino. Nem ele mesmo, nem outro qualquer solista alcançou ou alcançará novamente esse nível de perfeição.

Há interpretações que sentimos, não sei bem como, que jamais serão ultrapassadas, mas há outras, certamente muito poucas, que sabemos que jamais serão igualadas sequer. Assim ocorre com a gravação dos Prelúdios, Livros um e dois, de Debussy por Gieseking, de 53. Desde então qualquer outra interpretação, e isso inclui o grande Michelabngeli, o excelso Gilels e o agudo Pollini, não conseguiu senão empalidecer frente à limpidez luminosa de Gieseking.

É o prodigioso Quarteto Busch que nos oferecerá outra inigualável gravação, o nostálgico e evocativo Quarteto A Morte e a Donzela de Schubert. Nem o preconceituoso wagneriano Bernard Shaw poderia deixar de se comover com essa monumental interpretação do Requiem de Brahms por Klemperer. Solidez e honestidade são os ingredientes incomuns que o regente de aço adiciona para temperar o Romantismo de Brahms. E para finalizar essa pequena sequência de outro dos dez discos eternamente inigualáveis lembro a magnífica interpretação de Stravinsky de A Sagração da Primavera em um mesmo disco que a Pétrouchka. Stravisnky, assim como Villa-Lobos, não era um regente satisfatório. É um milagre que nesse momento específico tenha conseguido uma tal perfeição com a Orquestra Columbia.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 23/04/1989.

Debussy Preludes 1&2

Walter Gieseking

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