Em Conjuntura Internacional, Destaques

A teoria das “duas guerras”, esboçada por Amos Oz (FSP, 7/4/02), parece ter alcançado seus objetivos, pois vários foram os comentaristas e acadêmicos que dela já se valeram, embora em tão pouco tempo, para justificar a invasão da Palestina pelo Exército de Israel.
O sofisma começa já no título, que refere uma divisão em duas guerras, quando, em realidade, o que é proposto é a cisão da Palestina em duas entidades distintas. Uma seria a nação legítima, que tem o direito ao seu “Estado palestino”, e a outra seria o monstruoso “islã fanático”, a ser eliminado. A invasão da Palestina se justifica, portanto, como uma guerra ao islã fanático, de acordo com a semântica de Amos Oz.

Todavia, se é possível essa desintegração da Palestina, por que não aplicar o mesmo princípio a Israel, cindindo-o também em dois entes; um seria a nação que luta por um território próprio, sem o qual a cultura judaica não poderia sobreviver, e outro seria um Estado teocrático, dentre cujos dogmas está o de que as terras em disputa foram prometidas por Jeová ao povo judeu e que, portanto, é preciso expulsar os povos que historicamente as ocupam há mais que 2.000 anos.
Com isso, seriam, por acaso, inteiramente justificáveis os atentados terroristas que buscariam nada mais do que agredir as hordas exterminadoras que invadem suas fronteiras contínua e inexoravelmente há mais de 50 anos?

A retórica da cisão da Palestina, por outro lado, pode ser abalada, senão desmontada completamente, por uma simples pergunta. Existiria por acaso o “islã fanático” de Amos Oz, não fosse a sua legítima nação palestina violentada continuamente pela expansão dos territórios ocupados pelos “colonos israelenses”? Alguém, com um mínimo de honestidade intelectual, seria capaz de afirmar que existiriam homens e mulheres-bombas, não fosse a contínua humilhação e o reiterado abuso moral e físico efetuado sobre o povo palestino pelo opressor Estado de Israel?
Quando nos referimos ao fanatismo islâmico, é bom lembrar que Arafat elaborou um projeto de Estado inteiramente dissociado da religião, o que não é verdade em Israel.

Quando Amos Oz, após propor a retirada das tropas israelenses da Palestina, sugere que esse gesto não traria a paz, ele realmente está consentindo com a ocupação e com a consequentemente inelutável expansão da colonização. Ele se identifica assim com o sanguinário Sharon, diferenciando-se apenas pela retórica enganadora.

Pois bem, haverá alguém, com o mínimo de dignidade, que não reconheça que esta última irrupção de violência não tenha sido deliberadamente provocada por Sharon, ao se exibir com seu batalhão de guarda-costas na praça das Mesquitas, lugar sagrado dos muçulmanos? E, se instigou ele o conflito, só pode ter sido para forjar uma justificativa para a invasão e para a ocupação final da Terra Prometida. E a cada momento encontra uma desculpa para ampliar as hostilidades, exigindo uma impossível passividade de um povo que está sendo massacrado.

E enquanto chefes de Estado como Bush, o “seu” primeiro-ministro da Inglaterra e outros, inclusive o “seu” presidente do Brasil, mantêm um discurso em que “condenam” simultaneamente a agressão israelense e os atos terroristas dos muçulmanos, como se essas ações se neutralizassem mutuamente, Israel continua desobedecendo às resoluções da ONU – que, servil ao país hegemônico, engole o desaforo humildemente, desmoralizando-se ainda mais.

SABRA & SHATEELA MASSACRE│1982│KATSIKOYIANNIS / (alba.edu.lb)

SABRA & SHATEELA MASSACRE│1982│KATSIKOYIANNIS / (alba.edu.lb)

A justificativa fundamental para a invasão das cidades palestinas é a guerra ao terrorismo. O sofrimento da população israelense com os homens-bombas seria, assim, de tal ordem que justificaria os massacres na Palestina realizados pelo Estado de Israel. Ora, a população da cidade de São Paulo é apenas duas vezes maior que a de Israel e o número de latrocínios e outros crimes fatais por ano é pelo menos dez vezes maior que o número de casualidades decorrentes de atos terroristas em Israel. E ninguém, intelectual ou não, justificaria uma guerra de extermínio dos moradores de favelas de São Paulo.

Somente pode entender o ato desesperado do terrorismo suicida quem viveu décadas humilhado, oprimido, vilipendiado em sua auto-estima e seu orgulho humano. Nós, aqui fora, não temos capacidade para entender e julgar.

Atos de terrorismo certamente são condenáveis. Mas e a tortura, que muitas vezes redunda na morte do torturado e que é formalmente admitida por certos governos, inclusive o de Israel? Muitos têm contestado o paralelo Sharon-Hitler, sionismo-nazismo, Holocausto-Chatilla e Sabra. E, de fato, há uma significativa diferença, de dimensões, de intensidade, de consequências. Mas também são muitas as similaridades. A visão de documentários alemães da época em que tanques nazistas bombardeavam o gueto de Varsóvia não são diferentes dessas últimas imagens de tanques israelenses invadindo as cidades palestinas e da fútil resistência de cidadãos mal armados sendo assassinados, em ambos os casos.

Tanques israelenses a caminho de Gaza. Janeiro/2014 (xatoo.blogspot.com)

Tanques israelenses a caminho de Gaza. Janeiro/2014 (xatoo.blogspot.com)

Há também o mesmo desprezo pela opinião pública internacional e a mesma arrogância em relação a acordos internacionais, pois Israel não atendeu até hoje nenhuma das oito determinações da ONU que exigiam contenção de seus atos belicosos e devolução das terras palestinas ocupadas depois de 67, da mesma maneira que a Alemanha transgredia tratados internacionais.

Não podemos, certamente, ir tão longe quanto Malraux, que considera o terror um direito do patriota desesperado; porém considerar o homem-bomba um assassino, como Bush e seus apaniguados têm feito reiteradamente, é uma demonstração de má-fé e de profunda ignorância da natureza humana.


*Publicado no jornal Folha de São Paulo de  28 de abril de 2002

Créditos de imagem: federacionpalestina.cl/

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