Em Conjuntura Internacional, Destaques

I – As mentiras da mídia ajudaram a derrotar Hillary Clinton

Por Nilson Lage

A vitória de Donald Trump é, antes de mais nada, a derrota da mentira.

Armada de um fabuloso exército de marqueteiros, gatekeepers, especialistas em estatítisca, essa coisa brutal em que se tornou, a mídia perdeu.

Nem pesquisas de opinião, nem a indústria da realidade virtual: parafraseando Churchill, podem cegar muita gente por muito tempo, mas não por todo tempo.

Existe, sim, a realidade concreta. A insatisfação varria o país, visível a quem não usasse antolhos – até eu, que estou tão longe, ouvia o barulho dos dentes rangendo. Occupy e Tea Party não brotaram do nada e, à direita ou à esquerda, se uniriam um dia no interesse comum.

Por um momento, mas uniram-se. E a narrativa abre novo parágrafo.
Perdeu o método de discutir a vida pessoal quando interessa a vida pública; o uso da calúnia, a invenção para fins políticos de crimes difíceis de constatar, como estupros de não-vulneráveis – o caso é, por exemplo, de Julien Assenge.

Trump, proclama-se, é péssima pessoa. Grosso. Bilionário com discurso de proletário: irado como o dos pobres; ideologicamente flutuante como o da classe média; primário como o da maioria dos eleitores dos Estados Unidos, um país que há décadas prepara seu povo para trabalhar, cuidando para que não pense.

A América se descobre.

Mas não tenho, afinal, esperança de que persevere na descoberta. A mesma coisa aconteceu quando a derrota no Vietname mostrou aos americanos a falsidade do discurso de seu poder militar imbatível.

Na época, foi eleito um sujeito decente – decente demais, humano demais – que o sistema cuidou de expelir quatro anos depois, retornando ao banquete em que se alimenta de carências e desgraças.

FB NL []:09/11/2016.

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Nilson Lage. Jornalista e professor universitário (UFRJ e UFSC). Doutor em Linguística pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

II – É amarga, mas justa, a lição que Donald Trump acabou de nos dar

Por Miguel Esteves Cardoso

É um dia feliz para Donald Trump e para a maioria que o elegeu. Para nós é um dia triste e, do ponto de vista profissional, pelo menos para mim, vergonhoso.

Trump ganhou. Nós perdemos. Por nós quero eu dizer os meios de comunicação social dos EUA e da Europa. Segundo as histórias que nós contámos aos leitores e uns aos outros o que acaba de acontecer era impossível.

As nossas sondagens e opiniões – incluindo as minhas – não só se enganaram redondamente como contribuiram para criar um perigoso unanimismo que fez correr uma cortina de fumo digno dos propagandistas oficiais dos estados totalitários.

Eu leio todas as semanas duas revistas conservadoras americanas – The Weekly Standard e National Review. Leio todos os dias o igualmente pro-Republicano Wall Street Journal. Em nenhum deles fui avisado que Trump poderia ganhar.

Sinto-me vítima de uma conspiração – não da parte de Trump mas da parte dos media. Aquilo que aconteceu não foi a cobertura das eleições americanas, mas antes uma vasta campanha publicitária a favor de Hillary Clinton onde até revistas apolíticas como a Variety participaram.

Donald Trump foi sujeito à maior e mais violenta campanha de ataques pessoais que alguma vi na minha vida. Todos as principais publicações alinharam entusiasticamente. Sem recorrer a sites de extrema-direita o único site que defendia Trump foi o extraordinário Drudge Report. Foi só através dele que comecei a achar – e aqui vim dizer – que o eleitorado reage sempre mal às ordens paternalistas dadas por uma unanimidade de comentadores, jornalistas e celebridades.

A eleição de Donald Trump foi um triunfo da democracia e uma derrota profunda dos meios de comunicação social.

Claro que Trump não é nenhum outsider. É um bilionário que sempre fez parte da ordem estabelecida, da elite que dá as ordens e manda na economia dos EUA. É um amigo de Hillary e Bill Clinton que só se tornou ex-amigo porque lhe deu na gana ser presidente dos EUA.

Agora é. Conseguiu o que queria. Há-de voltar as costas ao eleitorado que o elegeu logo que perceba que a única coisa que esse eleitorado tinha para lhe dar já foi dado: os votos de que ele precisava para ser eleito.

Já fez o elogio de Hillary Clinton. Já disse que vai representar todos os americanos. Vai-se tornar lentamente um republicano moderado e liberal. Os oportunistas têm sempre essa vantagem da metamorfose.

Trump ganhou contra grande parte do Partido Republicano mas foi graças a ele que o Partido Republicano manteve a maioria no Senado e no Congresso. Se Trump fosse o populista aventureiro que finge ser aproveitaria para minar o sistema político vigente, tirando partido do poder político pessoal que agora tem.

Mas não fará nada disso. O Partido Republicano tem agora tudo na mão.

Trump presidirá à complacência do poder político instalado, do poder recuperado das mãos de Obama. O velho sistema político será reforçado e os beneficiários serão os de sempre: os que menos precisam.

E os media? Que vamos nós fazer? Continuar em campanha? Continuar a enganarmo-nos e a enganar quem nos lê?

Mostrarmo-nos surpreendidos e atónitos não chega. Só revela o mau trabalho que fizemos. Dizer que foi um choque, que ninguém estava à espera só aponta para o mundo ilusório onde reside a nossa própria zona de conforto.

Não é Trump que tem de dar uma reviravolta. Somos nós. Trump ganhou porque foi eleito. Nós perdemos porque fomos derrotados pelos nossos próprios preconceitos e pelo excesso de zelo com que perseguimos a vitória de Hillary Clinton.

É um dia feliz para Donald Trump e para a maioria que o elegeu. Para nós é um dia triste e, do ponto de vista profissional, pelo menos para mim, vergonhoso.

Público [https://www.publico.pt/]/09/11/2016.

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Miguel Vicente Esteves Cardoso.  Jornalista e Escritor.

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