Em Conjuntura Internacional, Destaques

A Turquia, dona do segundo maior exército no quadro da OTAN, faz força para figurar como membro leal da organização, mas comportamentos nascidos da própria identidade do Estado turco estão sempre tornando ambígua a participação de Ancara na movimentação ocidental. Em fins de julho de 2015, após conversa telefônica com Barack Obama, o Presidente Recep Tayyip Erdogan decidiu participar da frente de combate ao Estado Islâmico (EI), na fronteira entre a Turquia e a Síria, adesão que ele vinha há muito tentando evitar. O governo turco havia, inclusive, proibido que aviões americanos se abastecessem no conveniente aeroporto de Incirlik. Essa proibição foi agora levantada, e aviões turcos participaram do bombardeio de posições do EI na Síria; foi, no entanto, confirmado que os caças turcos aproveitaram para também alvejar bases curdas no norte do Iraque. Há duas motivações principais para essa duplicidade. Na complicada geopolítica do Oriente Próximo, com a ajuda de nuances islamitas, o regime sírio de Bashar al-Assad termina por ser mais odiento ao governo de Erdogan, do que o EI com todos os seus excessos de barbaridade. Há, além disso, a recusa ferrenha da Turquia, na sua versão idealizada após a I Guerra Mundial por Kemal Ataturk, a aceitar a existência de uma minoria curda no seu seio, recusa levada até a supressão da cultura e da língua curdas no país.

Um movimento de inspiração marxista pela autonomia curda na Turquia surgiu em 1984, sediado fora do país, nas remotas montanhas de Qandil, no norte do Iraque: o Partido Operário Curdo (PKK). Seu líder, Abdullah Okalam, está na prisão desde 1999, e os choques com esse partido já deixaram dezenas de milhares de mortos. As transformações no Oriente Próximo desencadeadas pela invasão americana do Iraque acabaram por influenciar as relações do Governo Regional Curdo (GRC), surgido no norte iraquiano, com o regime de Ancara. Em artigo na Current History (dezº 2014), o professor israelense Michael Eppel chama a atenção para a decisão do PKK, anunciada em maio de 2014, de substituir a luta pela criação de um Estado curdo independente por esforço em favor da democratização da Turquia, de modo a criar condições para o florescimento da autodeterminação curda no país. O GRC, do seu lado, passou a estimular o estreitamento de laços econômicos e políticos com a Turquia, buscando fazer crescer o interesse turco na autonomia curda no Iraque. Mais de mil companhias turcas foram atraídas para trabalhar no Curdistão iraquiano, região em rápido desenvolvimento que poderá vir ser a principal fonte de hidrocarbonetos para a Turquia. Nem por isso, deixou Erdogan de opor-se à independência do Curdistão iraquiano, vista como ameaça aos interesses estratégicos turcos.

Os curdos da Turquia representam o maior contingente dentre os 25 a 35
milhões de curdos que se estima viverem no Oriente Próximo, distribuídos entre cinco países. Começam, eles, a pesar na vida partidária turca, depois que o governo do então Primeiro Ministro Erdogan entabulou conversações informais com o PKK. Há duas evoluções em convergência, aí. De um lado, o próprio radicalismo do tratamento dispensado aos curdos foi dissolvendo, na Turquia, as solidariedades e afinidades tribais que continuam fortes entre os curdos do Iraque, da Síria e do Irã. Os curdos da Turquia mostram-se crescentemente modernizados, livres das peias ideológicas que emperram a ação de irmãos regionais. De outro lado, atuam as ambições políticas de Erdogan, que depois de longa permanência como Primeiro Ministro fez-se eleger Presidente, e vem procurando concentrar mais poder nas mãos desse mandatário. Seu partido, o AK (Justiça e Desenvolvimento), não obteve, no entanto, nas eleições de junho de 2015, a maioria necessária para emendar a Constituição. A grande novidade foi a subida do HDP (Partido Democrático Popular), uma organização que reflete as novas tendências dos curdos e que pela primeira vez obteve presença no Parlamento. Erdogan já convocou novas eleições, para novembro, mas o tempo é curto para chegar aonde ele quer. As relações com os curdos vão-se deteriorando.

E agrava-se o quadro na fronteira turco-síria, depois que os EUA passaram a combinar seus ataques aéreos com ajuda no solo aos grupos anti-Bashar al-Assad. Do lado sírio, na região chamada Rojava, os curdos começam a construir uma nova região autônoma, provocando pânico entre as autoridades de Ancara, que atacam alternadamente peshmergas e rebeldes sírios, numa tentativa de impedir a consolidação de áreas curdas do seu lado da fronteira.


Imagem: Bulent Kilic/AFP

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