Em Conjuntura Internacional, Destaques

Por Isabel De Luca

O Departamento de Defesa americano lançou sem alarde, no início do verão do Hemisfério Norte, um manual de mais de mil páginas em que reinterpreta as Leis de Guerra — como são conhecidos os princípios do direito internacional sobre justificativas aceitáveis para se entrar num conflito armado, e os limites da conduta em combate. Iniciativa inédita, o documento vem gerando polêmica por incluir uma série de parâmetros específicos para o tratamento de jornalistas que cobrem guerras pelo mundo. No trecho mais controverso, o Pentágono afirma que os profissionais da imprensa podem ser considerados “beligerantes sem privilégios”, termo aplicado a suspeitos que têm menos direitos do que prisioneiros de guerra e podem, portanto, ser punidos como terroristas, espiões e sabotadores.

Isso qualifica práticas infelizes iniciadas no governo Bush, com seu tratamento aos jornalistas na guerra ao terror, e dá uma estrutura formal que permite que se detenha um jornalista à margem das leis de guerra, sem evidência, por tempo indefinido — resume Frank Smyth, fundador e diretor executivo da Global Journalist Security, organização que treina jornalistas e organizações humanitárias pelo mundo. — Incluir jornalistas na mesma categoria de espiões e terroristas abre um tremendo potencial para abuso, especialmente num momento em que governos, milícias e forças insurgentes pelo mundo vêm abusando de jornalistas como nunca, na Nigéria, no Iraque, na Ucrânia, no Congo. Dá aos militares licença para detê-los, senão ocasionalmente atacá-los. E a noção de que isso pode ser usado por déspotas em todo o mundo para justificar seu comportamento é uma grande preocupação.

O manual veio à tona enquanto o Comitê de Proteção a Jornalistas (CPJ) chama a atenção para números recordes de jornalistas detidos ou assassinados pelo mundo: dos 61 repórteres mortos no ano passado, 59% cobriam guerras. Na semana passada, o jornal “New York Times” publicou um duro editorial alertando que “permitir que este texto funcione como guia causará danos severos à liberdade de imprensa”. “A Casa Branca deveria exigir que o secretário de Defesa, Ashton Carter, revise este conteúdo que contraria a lei e os princípios americanos”, pede o artigo.

Na mesma linha, Smyth — que escreveu uma análise crítica ao documento para o CPJ, onde atua como conselheiro — acusa o Pentágono de ignorar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, “comprometendo as leis sem bases jurídicas”. Ele questiona, ainda, a linguagem “vaga e controversa” usada no manual:

Ele não deixa claro como a categoria de beligerantes sem privilégios pode ser aplicada a jornalistas. Essa associação não é baseada em nenhuma lei internacional, tratado internacional ou caso prévio. Eles estão apenas assegurando o direito de fazê-lo, alegando que isso não estabelece uma nova lei. Mas, de fato, o texto qualifica práticas que não existiam antes e que entendemos como novas leis — diz. — Ao permitir que jornalistas sejam enquadrados nessa categoria, o documento mina normas estabelecidas depois da Segunda Guerra pela Declaração Universal dos Direitos Humanos que garantem o direito de os profissionais disseminarem informações de valor noticioso.

De acordo com o documento, “a transmissão de informação (como fornecer informação de uso imediato em operações de combate) pode constituir participação nas hostilidades”. “Cobrir operações militares pode ser muito similar a coletar dados de inteligência ou mesmo espionagem. Um jornalista que atua como espião pode se sujeitar a medidas de segurança e ser punido se capturado”, diz o texto, que incita governos a “censurar o trabalho de jornalistas ou tomar outras medidas de segurança para que não revelem informações sensíveis para o inimigo”.

Porta-voz do Departamento de Defesa, o comandante Joe Sowers explica que todos os serviços militares costumam publicar textos sobre as leis de guerra “que servem como recursos valiosos para o seu pessoal”, mas frisa que este é o primeiro manual que abrange toda a estrutura.

Quanto à advertência, no último parágrafo do prefácio, de que embora o documento represente a visão do Pentágono e tenha sido elaborado com a participação de especialistas de outros departamentos ele não necessariamente representa a visão do governo como um todo, o militar afirma que “apesar de ser um tratado abrangente e, acreditamos, útil para muitos no governo e outros também, é uma declaração autoritária sobre as leis de guerra para os funcionários da Defesa”.

O departamento reconhece e respeita o trabalho vital dos jornalistas. Seu esforço de colher e disseminar notícias é essencial a uma sociedade livre —ressalta. — Mas defendemos a precisão do manual, um recurso importante e legal para ser usado por militares e conselheiros civis que servem no Departamento de Defesa. O manual vai ajudar a disseminar informações sobre as leis humanitárias internacionais e será particularmente útil para conselheiros jurídicos que assessoram comandantes em operações militares.

De Beirute, no Líbano, onde se baseia enquanto cobre os conflitos na Síria para diversos veículos, a jornalista síria-americana Rasha Elass torce para que o termo “beligerante sem privilégios” seja retirado do documento. Diferentemente dos prisioneiros de guerra, que são protegidos internacionalmente por uma série de direitos, a categoria é sujeita às leis de cada local — o que, em alguns casos, inclui a pena de morte para espiões.

Rotular jornalistas como qualquer coisa que não seja um civil é uma ladeira perigosa e escorregadia, não só pela segurança dos correspondentes de guerra, que devem encarar um terreno cada vez mais difícil, mas também para a nossa Primeira Emenda e para a democracia. Isso me faz lembrar os governos corruptos e ditatoriais que eu e meus colegas arriscamos nossas vidas para cobrir, governos que nos veem como nada além de “beligerantes sem privilégios”, facilmente alvejados com morte ou detenção, mesmo antes de o manual do Departamento de Defesa cunhar o termo.

Smyth — para quem o documento dificulta sobretudo o trabalho de repórteres freelancers — espera que os jornalistas continuem trabalhando juntos e denunciando abusos a organizações como a CPJ e a Repórteres sem Fronteiras.

Sempre esperamos dos Estados Unidos liderança em liberdade de imprensa, mas temos visto o país violando regras de liberdade de imprensa e agora formalizando isso. Não estamos vendo os EUA liderando o mundo de forma positiva, mas baixando o nível de exigência, com consequências desastrosas para jornalistas e para o público — ele lamenta.

O Globo: 23/08/2015.
Isabel De Luca. Jornalista.


Imagem: Mstyslav Chernov/ UnFrame/ 2014

 

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