Em Destaques, Música

Deparei-me hoje com um problema inatendido. Um pouco inseguro em meu propósito de comentar as gravações existentes da Ode a Santa Cecilia de Haendel e encontrando dentre as de que disponho apenas versões sofríveis, para dizer o menos, voltei-me para o passado e busquei esclarecimentos na opinião da crítica. Fui levado assim a colocar-me na posição de um naturalista que vê a crítica, ou a opinião do crítico, como um fenômeno novo a ser analisado e classificado. O primeiro fato relevante que registrei é que diferentes críticos chegam a conclusões diversas a respeito do mesmo acontecimento musical. Além do mais, o público leitor parece estar inteiramente consciente dessa inerente incongruência da crítica. Em segundo lugar, também é óbvio que não acreditamos muito em críticos, mas queremos saber sua opinião, ou melhor, estamos interessados em suas reações intelectuais ou puramente emotivas em relação a uma obra ou uma interpretação, mas não em seus argumentos.

Fica também evidente dessa análise que o crítico propriamente não se conforma com essa insólita posição de um simples sensor (e não censor como muitos acabam por se converter), privilegiado talvez por uma experiência e uma sensibilidade particulares, mas destituídos de qualquer instrumento eficiente de avaliação. Por outro lado, nenhum crítico tem a coragem de dizer simplesmente gosto porque gosto. Os mais inteligentes encontraram analogias ou razões técnicas para justificar, a posteriori, suas preferências, mas apenas alguns poucos terão a coragem de revelar o mistério e a irracionalidade que determinam suas inclinações. Pois se a palavra fosse suficiente, de que serviria a música?

O crítico musical se depara assim com esse primeiro paradoxo. Como explicar, em termos literários, o enigma da música? Os menos talentosos desenvolvem, assim, todo um vocabulário e uma semântica subjetiva própria com o intento de ocultar essa inerente impotência. Às vezes, um jargão específico oferece ao crítico um meio de pseudo-análise e de sobrevivência para sua autoestima. Penso que alguns chegam a acreditar nos refrãos que repetem. Entretanto, não basta ao crítico dizer o que sentiu quando presenciou um dado acontecimento musical. A ele compete revelar algo novo, ainda não percebido, sobre a essência da música. Todavia, a informação principal ainda é aquela de ordem subjetiva que qualifica o prazer que sentimos durante o evento musical.

Não há no momento uma única interpretação satisfatória da Ode a Santa Cecilia, embora se encontrem algumas em catálogo. Ou melhor, aceitando as limitações expostas acima, devo dizer: “Não há no momento uma única versão da “Ode a Santa Cecilia” que me traga prazer ouvir”. A versão de Harnoncourt com o ConcentusMusicus é tão árida como o deserto de Saara. Não percebo uma única imprecisão ou falha do ponto de vista técnico. É aquilo que chamamos de um esforço em benefício da autenticidade, recomendável, porém, apenas para musicólogos. A audácia e o ímpeto do texto de Dryden e da música de Haendel ficam inteiramente soterrados. Igualmente ruim é a versão de Willcockscom a Academia de Saint Martin-in-theFields, sem cor e sem drama. Por incrível que possa parecer, a melhor versão é aquela escolasticamente despretensiosa e até mesmo um pouco grandiloquente de Anthony Bernard com a Orquestra de Câmera de Londres. É verdade que conta com a sempre competente Stich-Randall e com o talento de Alexander Young. Todavia, fica ainda muito distante daquela que há trinta anos atrás foi a primeira gravação dessa obra-prima de Haendel sob a direção de Rudolf Lamy. Se alguém dispõe dessa gravação guarde-a, pois é uma preciosidade.

A interpretação de referência para as odes e Te Deum de Haendel é certamente a de Geraint Jones e sua orquestra, do Te Deum e Jubilate de Utrecht, que ainda está acoplado ao hino de coroação Zadok, o Sacerdote. É um disco imprescindível e acaba de ser reeditado pela Archiv. O outro Te Deum de Dettingen, não tem a mesma sorte. A única gravação existente no catálogo, com François Paillard e sua orquestra é apenas sofrível. Prefiro aquela de Gönnenwein com a Orquestra de Câmera do Sudeste da Alemanha de vinte anos atrás. Um pouco melhor está o Dixit que foi recentemente gravado por Willcocks e a Orquestra de Câmera Inglesa, e o competente Coro do King’s College. É uma gravação razoável, talvez preferível àquela de Eberhard Wenzel com a Orquestra Bach de Berlim que, apesar de seu germanismo é aceitável. Mas nenhuma das duas gravações é inteiramente satisfatória.

Uma edição atraente dos Hinos Chandos nos é oferecida por Willcocks e a Orquestra de Saint Martin-in-theFields certamente superior a Alfred Mann e seu Collegium Musicum da Universidade de Rutger. A Ode pelo Aniversário da Rainha Anne tem, além da razoável versão de Deller com a Orquestra e o Coro de Oriana, uma excelente edição com Simon Preston, a Academia de Música Antiga e o coro da Catedral de Cristo, de Oxford. Esse último traz ainda uma notável versão do Hino para o Foundling Hospital. Para a Ode pela Morte da Rainha Carolina, tão rica musicalmente quanto as antecedentes, dispomos apenas de uma versão de valor medíocre com Kurt Bauer e Coros e Orquestra da Catedral de Dresden. Como se vê, a música vocal de Haendel, salvo algumas exceções, continua sendo grandemente negligenciada, mesmo no que se refere a esse segmento popular e alegre representado pelas suas odes, hinos Te Deum. Em realidade, de toda discografia existente, apenas duas gravações são essenciais, a versão do Te Deum e Jubilate de Utrecht com Gèraint Jones e a edição da Ode para a Rainha Anne, em conjunto com o Hino para o Foundling Hospital, com Simon Preston. O resto é dispensável, condição certamente muito triste.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 09/10/1983.

Facebooktwitter