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Todo melômano é um vindicante. Quem não tem sua pequena galeria de injustiçados? Ainda recentemente um desses fanáticos da música me cobrava, ressentido, a restauração de Baldassare Galuppi, um contemporâneo de Haydn e Mozart, certamente dotado de talento. Mas a história é impiedosa com os talentosos. Só os gênios sobrevivem. Todavia, é preciso saber distinguir entre talento e genialidade.

Durante quase um século Bach foi totalmente esquecido pelo grande público. Durante esse período apenas os gênios vieram saciar sua sede em suas obras. É um compositor da nossa época, pois o devido reconhecimento só lhe foi concedido nesse século XX. Até há quarenta anos atrás, Vivaldi era um ilustre desconhecido. Em sua personalista Uma História da Música, de 1969, o controvertido Lucien Rebatet se surpreende com a súbita glória de Vivaldi, comparando-o com seu contemporâneo Giovanni Sammartini a quem atribui pelo menos idêntica qualificação como compositor.

Eu, de minha parte, serei eternamente grato pelo dedicado trabalho de Pincherle* e outros que a partir da metade desse século se dedicaram à recuperação, organização e divulgação da obra de Vivaldi. Tenho mesmo a impressão de que o mundo ficou um pouco mais feliz com a descoberta de sua vitalidade exuberante. Mas o pouco que conheço de Sammartini, insuficiente, por certo, não me leva a tal regozijo, apesar da dedicação e competência de seu vindicante maior, Newell Jenkins.

É justamente sob sua direção que foi editada em discos pela Orquestra l’Angelicum de Milão uma série de Sinfonias de Sammartini, e que recomendo não somente àqueles que se sentem como justiceiros da arte, mas também aos que são capazes de se satisfazer com obras bem constituídas e elegantes. Mas que o leitor não espere uma experiência comparável àquela dos anos 50, quando inesperadamente surgiram os primeiros discos com música de Vivaldi ao mesmo tempo que a orquestra de câmera era reavivada.

Galuppi é fundamentalmente um compositor de óperas, tendo escrito pelo menos sessenta e a prova do prestígio que teve à sua época é a quantidade de libbretti por autores como Goldoni e Metastasio. Também escreveu alguns oratórios e cantatas religiosas. Nenhuma de suas óperas foi gravada, que eu tenha notícia, mas algumas de suas obras sacras foram incluídas em discos dedicados a vários autores. A mais interessante é um Magnificat que foi editado juntamente com o Glória RV 589 de Vivaldi, tendo como solista Ana Maria Miranda, e os Coros de Câmera de Berna e a Orquestra de Pforzheim, sob J. E. Dähler. Horowitz gravou algumas de suas Sonatinas e Claudio Scimone gravou com o seu I Solisti Veneti quatro de seus Concertos para cravo. São obras líricas, mas destituídas de drama. Um Telemann italiano que mereceria certamente mais atenção do que teve até agora. Mas apenas um Telemann não mais.

Como Galuppi e Sammartini, há por certo, uma infinidade de talentos injustiçados. Porém a injustiça maior é aquela igualmente volumosa que ocorre com as grandes obras. Tomemos alguns exemplos. Quem, mesmo dentre os mais dedicados fanáticos, teve a oportunidade de ouvir Selva Morale e Spirituale de Monteverdi em sua totalidade?

A única gravação completa com Corboz e o Conjunto Vocal e Instrumental de Lausanne, embora recomendável, não se encontra há muito tempo. Algumas respeitáveis seleções existem, é verdade, a exemplo da recente e lírica interpretação de Parrott com os Taverner, ou da sóbria e preciosista visão do Coro de Câmera de Stuttgart e do Conjunto Barroco da mesma cidade sob a direção de Frieder Bernius.

É verdade que inúmeras seleções dessa obra de Monteverdi foram publicadas em conjunto com madrigais seculares ou outras obras sacras. Algumas dessas seleções são antológicas. Exemplos inolvidáveis são aquelas de Jürgen Jürgens com o Coro Monteverdi de Hamburgo e solistas editados pelo Archiv da DGG ou pela Telefunken alemã. Também merecem atenção as coletâneas do Concerto Vocale com René Jacobs para a Harmonia Mundi.

Todavia, mais da metade dos títulos da Selva Morale e Spirituale, exceto pela histórica gravação de Corboz, não existem em gravação. E eu, de minha parte, considero uma única, uma qualquer, das peças dessa coletânea um patrimônio superior a todas as sessenta óperas de Galuppi ou todas as setenta sinfonias de Sammartini.

*Marc Pincherle, Vivaldi – Genius of the Baroque, W. W. Norton & Company, N. York, 1962. Trad. Christopher Hatch.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica.  São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 03/05/1987.

Ilustração: Statua di Baldassare Galuppi e facciate colorate a Burano [http://bit.ly/22iycUR]

MONTEVERDI

Selva Morale e Spirituale

Direção Michel Corboz LP

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