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Por Juremir Machado da Silva

Carlos Lacerda foi o algoz de Getúlio Vargas em 1954 e de João Goulart em 1964. Mas a sua vocação para o golpismo não lhe garantiu a realização do seu maior sonho: chegar à presidência da República. A UDN, partido de direita que o adotou (era bastardo do comunismo), só tomaria o poder pela terceirização, via ditadura militar, adotando o nome de ARENA. Foi o que lhe sobrou. Não era o projeto de todos os udenistas. Foi a aposta de muitos. Lacerda achava que o jogo seria rápido. Há quem pense que a UDN chegou ao poder antes com Jânio Quadros. É mais ou menos como convencer alguns peemedebistas gaúchos de que o PMDB está no poder, de fato, desde que se aliou como Lula e Dilma. Jânio era um cavaleiro solitário de triste figura.

A cavalgadura de Sancho Pança.

Carlos Lacerda, o Corvo, vivia para o golpismo. Ficou famosa a sua tirada sobre a candidatura de Getúlio para a eleição de 1950: “Vargas não deve ser candidato. Se for candidato, não deve ser eleito. Se for eleito, não pode tomar posse. Se tomar posse, não pode governar”. Lacerda quase sempre perdia. Jamais admitia. Getúlio foi eleito, tomou posse e tentou governar. Foi acuado com tentativas de golpe de todos os tipos, formatos e fórmulas. Pediu-se a sua renúncia. Tentou-se o seu impeachment.

Getúlio havia cometido crimes hediondos como defender o petróleo brasileiro, criar a Petrobras, elevar o salário mínimo em 100% e aumentar a contribuição patronal para a previdência. Contra ele se ergueu a bandeira moral do combate à corrupção.

Getúlio optou pelo suicídio. Saiu da vida e da história para virar mito.

A história, como dizia Karl Marx, só se repete como farsa. Marx, na verdade, disse isto: “Hegel observa em uma das suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”.

A farsa é a tragédia da repetição da história como caricatura.

A UDN foi a tragédia.

Até Lacerda foi trucidado. Não levou a presidência. O poder não lhe caiu no colo. Foi o Corvo que caiu em desgraça. Perdeu.

A bola da vez agora é Lula. Em 2018, não deve ser candidato. Se for candidato, não deve ser eleito. Se for eleito, não pode tomar posse. Se tomar posse, não pode governar. Se tentar governar, deve ser acuado por tentativas de impeachment e pedidos de renúncia. Se quiser se suicidar, os adversários não lamentarão. Alguns já pediram o mesmo à presidente Dilma Rousseff. Por enquanto, a operação do lacerdismo tardio consiste em tentar evitar que Lula seja candidato à sucessão de Dilma. A prova disso é “Projeto de Emenda Constitucional” protocolado na Câmara de Deputados por Cristina Brasil, filha de Roberto Jefferson, o homem que detonou o escândalo do mensalão. Um Projeto de Emenda Constitucional, nomenclatura que me parece mais pertinente pela natureza dos conteúdos, é uma Proposta de Emenda à Constituição. Como projeto, antecipa o futuro, quase sempre por razões pouco presentes. Como proposta, enfrenta o contraditório. Como realidade, neste caso, é um casuísmo.

A PEC 125/2015, apelidada de PEC anti-Lula, tem um único objetivo: evitar que Lula possa se eleger daqui a três anos e meio.

É um recibo de manobra eleitoreira.

Mostra o medo que a direita tem de perder outra vez para Lula. O texto, que atinge de prefeitos a presidente da República, tem alvo certo. Proíbe a “reeleição por períodos descontinuados para cargos do Executivo”. Ou seja, quem cumpriu seus mandatos, está fora do jogo para sempre. O oportunismo da PEC tem a sutileza de um coice. A justificativa da proposta merece ser estudada em cursos de lógica: “Ademais, um candidato recorrente possui uma vantagem desproporcional e desleal sobre os seus adversários, visto que este já possui um nome e um legado já conhecido pelo povo”. Melhor é não possuir nome nem legado conhecido pelo povo. E se o povo considerar o legado bom? Não pode o povo decidir por conta própria? Ou o povo não sabe escolher e deve ser protegido das suas escolhas irracionais? Deve-se proteger o povo de votar nos outros.

A Europa dá, por outros caminhos, exemplos frutíferos de continuidade.

A rigor, numa democracia, não deveria existir qualquer limitação de mandatos. Quem escolhe é o eleitor. Se ele quer mais do mesmo, bom ou ruim, por que não? A limitação de mandatos é uma forma de dizer que a população não vota racionalmente ou se deixa enganar com facilidade. Não deixa de ser uma modalidade de tutela e de paternalismo. Quem está no poder, gosta de reeleições. Quem não está, quer sempre acabar com elas. Os tucanos, a nova UDN, garantiram por meios pouco republicanos, com valores declarados por deputados réus confessos (que não se tornaram réus de fato por falta de vontade investigativa e punitiva com a turma dos camarotes), a emenda de reeleição que deu a FHC um segundo mandato. Hoje, militam contra a reeleição e devem apoiar a PEC anti-Lula. Um espectro ronda o Brasil. Não é o comunismo. É o lacerdismo tardio.

Como foi que a PSDB, nascido para ser social-democrata, quem sabe um PTB (de antes de 1964) de elite, tornou-se neoliberal e golpista, sucedâneo da UDN e, por extensão, uma mutação da ARENA? O DEM, que foi PFL, metamorfose da ARENA, deve morrer de inveja. O PSDB tomou-lhe as bandeiras e já se apropria também da sua biografia. Do corvo ao vampiro.

Como foi que o PT passou de partido da ética a partido da corrupção?

Só o PMDB não muda.

Conseguiu um modus vivendi com a ditadura.

Ajeitou-se na transição.

Convive com o PT.

FHC bola fórmulas lacerdistas: pacto nacional e depois renúncia de Dilma. Não se envergonha?

Como doutor em sociologia e historiador, especializado em Brasil do século XX, conhecedor da era Vargas e das raízes do golpe de 1964, com livros sobre o assunto, não tenho dúvidas: a tragédia atual é a farsa do golpismo como solução democrática.

Há brasileiros que, por índole monarquista, preferem eleger para o presidencialismo, mas, por tendência histórica golpista e de falta de paciência para esperar o final dos mandatos, preferem derrubar por uma espécie de parlamentarismo de ocasião.

Em 1964, a UDN foi a tragédia (tentativa de repetição de 1954).

Quem é a farsa hoje?

Pode a história acontecer três vezes?

Ganha um bico de ouro quem acertar.

Juremir Machado da Silva. Jornalista.

Correio do Povo: 26/09/2015


Imagem: tijolaco.com.br

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