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O tratado de Jacques Chailley sobre A Flauta Mágica de Mozart* traz como subtítulo a expressão ópera maçônica. Essa denominação poderia levantar algumas suspeitas entre intelectuais pois, em relação a essa organização leiga, a maçonaria, muitas desconfianças existem. É preciso, entretanto, lembrar que a história dessa entidade é bastante acidentada, para dizer o menos.

A maçonaria evoluiu das poderosas fraternidades medievais de construtores de catedrais e pedreiros que, com o declínio da atividade profissional de seus membros, passaram a aceitar participantes honorários leigos. Aparentemente, algumas dessas organizações, para se tornarem mais atraentes, exacerbaram seus rituais e seu hermetismo, agregando práticas e símbolos de ordens da cavalaria e de religiões antigas. Com essa origem irregular não é pois de se estranhar que, no século XVIII viesse a maçonaria abrigar ideais liberalizantes e mesmo explicitamente republicanos, e, incorporar alguns gênios como Goethe e Mozart entre seus partícipes.

Foi apenas no século seguinte que surgiram as exóticas ramificações que trouxeram o progressivo descrédito da entidade, que hoje não passa de uma agremiação de proteção recíproca e pouca substância ideológica. Uma espécie de Rotary travestido de Mandraque.

É, pois, necessário remetermo-nos ao século XVIII para compreender o esforço intelectual exercido por Schikaneder, o libretista d’A Flauta Mágica, e principalmente pelo próprio Mozart. É bom lembrar que essa obra já mereceu inúmeros tratados interpretativos de musicólogos e historiadores na tentativa de revelar uma mensagem cifrada das mais complexas. Esses especialistas (Nettl**, Chailley, Thompson***, entre outros) se convenceram de uma subliminar mensagem cosmogônica como base orgânica da obra. E seus argumentos são inteiramente convincentes.

Entretanto, não é preciso estar familiarizado com a simbologia esotérica da maçonaria, ou com as peculiares condições políticas e sociais prevalecentes durante a segunda metade do século, para extrair imensa satisfação intelectual da audição dessa obra-prima. Mas mesmo aqueles que se limitam à superfície da narração e da concepção musical e se satisfazem com a aparentemente ingênua e mesmo grotesca trama sobrenatural, não poderão deixar de se maravilhar com essa costura arquitetônica.

Mas eu vou ainda mais longe. A genialidade de Mozart é de tal ordem que dispensa qualquer percepção do conteúdo intelectual da obra. Durante muitos anos ignorei inteiramente a substância simbólica d’A Flauta Mágica. Sabia de sua existência, porém, talvez com a desconfiança de que um aprofundamento, no sentido esotérico da peça, poderia sobrecarregar meu contato puramente musical com ela, evitei sistematicamente qualquer reflexão ou pesquisa.

É claro que foi uma decisão indefensável. Lembra-me um episódio de quando eu era estudante em Paris e encontrei um compatriota, pintor hoje consagrado, que evitava visitas a museus por temer uma contaminação cultural. E lá passou ele três ou quatro meses, na Meca das artes plásticas, escondendo-se em botequins e rodas sociais ociosas, preservando algo de autêntico que ele mesmo não sabia definir. Pois eu, após algumas leituras sobre esse capítulo da produção mozartiana, não senti em nada alterada minha relação íntima com A Flauta Mágica. São duas experiências inteiramente imiscíveis.

Enriqueceu-me a leitura de textos explicativos sobre a simbologia maçônica da ópera, mas em nada vi esse conhecimento expandir ou limitar a sensação estética que experimento ao ouvir essa peça. Talvez porque seja ela uma dessas obras absolutas, que dispensam explicações. Estou convencido de que o melômano de sensibilidade pode ouvir essa ópera com a mesma atitude contemplativa que assume quando escuta, digamos, um concerto para piano do mesmo autor. Poderá dispensar até o libreto. E aqui está a grande diferença entre essa e as demais óperas de Mozart ou de qualquer outro autor. E talvez seja a razão para ocupar um espaço tão especial no universo da música ocidental.

Há duas gravações antológicas d’A Flauta Mágica, a de Sir Thomas Beecham com a Filarmônica de Berlim, mística e radiosamente eloquente. E a de Klemperer, serena e solene, com a Filarmônica de Londres. A primeira é de 1937, enquanto a segunda é de 1964. Entre uma e outra foi gravada a versão de Karajan com a Filarmônica de Viena, certamente superior àquela com o mesmo regente e com a Filarmônica de Berlim, recentemente lançada no Brasil. As versões de Fricsay, Böhm (1956), Solti e Haitink são mais que satisfatórias. Toscanini e Furtwängler são testemunhos interessantes, mas recomendáveis apenas para fanáticos.

*Jacques Chailley, La Flûte Enchantée Opéra Maçonnique, Editions D’Aujourd’hui, Paris, 1968.

**P. Nettl, Mozart and Masonry, N. York, 1970.

***Oscar Thompson, The International Cyclopedia of Music and Musicians, Dodd, Mead & Cia. N. York, 1956, p. 1182.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 06/07/1986.

Wolfgang Amadeus Mozart

The Magic Flute

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Sir Thomas Beecham

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Imagem: Illustrations from Emanuele Luzzati’s children’s book published in 1971-72.

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