Os acontecimentos pareciam, por muito tempo, contestar uma afirmativa de Jânio de Freitas nessa Folha de São Paulo. Maguila estaria acabado com duas fragorosas derrotas por nocaute para boxeadores medíocres, afirmara o metódico jornalista. E, no entanto, o corajoso brasileiro de queixo de vidro conseguira recuperar seu prestígio posteriormente, derrotando seus dois oponentes anteriormente vitoriosos e uma sequência de pugilistas decadentes. É verdade que as pernas bambeavam sempre que algum soco passava-lhe por perto das mandíbulas. Mas nossa natural patriotada nos fazia a cada espetáculo empilhar ilusões. E Maguila subia no ranking mundial até a posição de challenger. Ora, como poderia lá estar se não fosse o melhor? Um dilema clássico. Seria Maguila uma farsa? E a cada nova luta removíamos um pouco de nossas dúvidas e consolidávamos nosso sonho. Quem se lembra do último filme de Humphrey Bogart? Em que o prestígio de um boxeador de queixo de vidro foi montado ardilosamente para que no final as apostas enchessem os bolsos do inescrupuloso empresário Rod Steiger! É claro que a montagem em torno de Maguila teve uma finalidade mais construtiva, atrair a atenção do público para um esporte desprestigiado no Brasil. E com esse intento se conseguiu a conivência das organizações esportivas internacionais. Mas a hora da verdade chegou. No boxe não há alternativa. A farsa se desfaz um dia, pois haverá sempre alguém no caminho do valente de queixo de vidro. Não pode haver dois campeões, ou dois desafiantes. Mas com a música a coisa é diferente, não há campeões, não há disputas diretas. E por isso farsas dessa natureza são bem mais difíceis de serem desmontadas. Todavia, a despeito do exemplo do boxe, casos de montagens assim deliberadas são raras no campo da interpretação musical. E isso devido, em grande parte, presumo, a essa inglória espécie, o crítico musical. Não obstante abundam manipulações modestas.
Vejamos qual é a fórmula desenvolvida pelos intérpretes medíocres brasileiros para montar a farsa. Bom, começa-se com algumas tournées internacionais. Há centenas de pequenos jornais e mesmo grandes que contratam críticos improvisados. A probabilidade de que alguns elogios ocorram é grande mesmo para o mais medíocre intérprete. E principalmente se ele é um desses cometas provenientes de um país subdesenvolvido. É claro que se houver dinheiro é recomendável um concerto no Carnegie Hall. Poucos brasileiros sabem que quase qualquer um pode alugar essa sala. E muitas outras existem que emprestam prestígio e preço fixo. E o mesmo ocorre com discos. Se o papai é rico, o nosso farsante poderá gravar a obra completa de Bach. É claro que não será para a Deutsche Grammophon, ou para a EMI, mas haverá sempre uma gravadora menor, disposta a fazer alguns cobres. E assim talvez o nosso farsante até se torne um sucesso nacional, um Maguila do teclado. Que o leitor não se intimide, entretanto, pois há uma plêiade de grandes intérpretes da música para cravo de Bach. Infelizmente o mago Scott Ross faleceu apenas começando o projeto de ciclo integral. Mas temos o sábio Gustav Leonhardt e o vidente Kenneth Gilbert. E mais recentemente o sacerdote Davitt Moroney. Ao piano, os antológicos Edwin Fischer e Sviatoslav Richter, o genial Gould e o divino Lipatti. Da nova geração, o exuberante András Schiff. E para os nacionalistas um brasileiro promissor, Steuerman.
Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 17/09/1989.