Em Destaques

A História da Música, e talvez da Arte em geral, pode ser visualizada como uma sucessão de rupturas de estados de equilíbrio entre os vários elementos que constituem a expressão musical, como sejam a harmonia, a melodia, o ritmo, e posterior busca por outro ponto de integração natural desses elementos. É claro que outros equilíbrios, como por exemplo, entre estrutura formal e espontaneidade, entre expressividade e sobriedade, interferem no processo. O que não fica muito claro é como são esses equilíbrios inesperadamente contestados e por que sucumbem. Após Brahms, que havia conseguido um sólido equilíbrio formal e expressivo, há um verdadeiro colapso. Max Reger, exagerando efeitos harmônicos e com certo desprezo pelo ritmo, é forçado a um miniaturismo inconformado. A eloquência teatral de Shostakovitch desarticula a estrutura e remove a espontaneidade em favor da melodia e do ritmo. Richard Strauss se impõe apenas através de uma multiplicidade de imaginativos efeitos orquestrais, abandonando os grandes gestos beethovenianos em troca de um preciosismo de detalhes.

Em meio a essa comoção lá está Mahler trabalhando fervorosamente em busca de um estilo próprio, de um equilíbrio particular. Seu método é ingênuo, mas eficaz. Em vez de partir da integração de conceitos, encontrando o equilíbrio entre os elementos abstratos que constituem a música, ele prefere conciliar formas concretas tradicionais e, para tanto, parte simultaneamente de duas estruturas extremas procurando fazê-las convergir.

De um lado, a canção onde imperam o ritmo, a melodia, a espontaneidade e onde são determinantes as raízes populares e de outro, a sinfonia, intelectualizada, em que domina a harmonia e a complexidade arquitetônica. Não entendo a insistência com que alguns críticos procuram relacionar o projeto de Mahler com a obra de Bruckner, que procurou partir sempre de uma extensão do coral homofônico. É de Schubert que Mahler parte em seu primeiro roteiro e é em Brahms que ele se apoia para o segundo. Não são, entretanto, incomunicáveis essas duas opções. Sua Primeira Sinfonia já tem um pouco de canção e suas primeiras Canções já são incipientemente sinfônicas. O mais notável é que Mahler em momento algum abandonou essa estratégia. E obstinadamente a ela voltou em cada uma de suas composições maiores.

Sua obra é pouco extensa. Dez Sinfonias (a última permanecendo inacabada). E Sete Ciclos de Canções e uma Cantata. Creio que a chave para uma interpretação apropriada de sua música é a compreensão dessa permanente dualidade. É preciso estar atento, pois frequentemente ele intercala num mesmo movimento episódios dominantemente sinfônicos na estrutura de uma canção, e vice-versa.

Ninguém melhor que seu dileto amigo e discípulo, Bruno Walter, compreendeu essa ambivalência intrínseca e é por isso que suas interpretações históricas são insubstituíveis, principalmente as das obras mais complexas como a Nona Sinfonia e A Canção da Terra, ambas escritas pouco antes da morte do compositor. Dois e três anos, respectivamente.

Walter tem duas interpretações em discos da Nona, ambas recentemente reeditadas. Aquela com a Filarmônica de Viena é obrigatória pelo patético e pela espontaneidade. A outra também, pela consciência formal e por esse maravilhoso equilíbrio entre eloquência e introspecção.

A Canção da Terra com Walter não tem rival e os solistas, a fabulosa Ferrier e o místico Patzak, são incomparáveis. Ferrier também gravou o ciclo Kindertotenlieder e as Cinco Canções de Rückert, novamente de maneira definitiva.

Entretanto, em um extremo oposto a Walter, Klemperer contrapõe sua usual solidez com um sucesso inquestionável. Suas duas versões da Segunda Sinfonia – a primeira com Ferrier e Vincent e a segunda com Schwarzkopf e Rössel-Majdan – são exemplos antológicos permanentes. Aliás, de maneira geral Klemperer é sempre recomendável em Mahler. Solti foi muito feliz em sua versão com a Concertgebouw da década passada, mas é bastante desigual com a mais recente edição completa com a Sinfônica de Chicago.

Bernstein é aceitável, em geral, mas Kubelík e Haitink são bem superiores em seus respectivos ciclos das Sinfonias. Intérpretes eventuais e competentes de Mahler são Neumann, Tennstedt e Barbirolli.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 05/08/1984.

Gustav Marler

Das Lied von der Erde (A Canção da Terra) – 1936
Wiener Philharmoniker
Bruno Walter

Clique aqui!

Facebooktwitter