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Um dos fatos mais deploráveis da história da humanidade é a escassez de registros sobre a música Medieval. Tudo o que foi preservado da música ocidental religiosa e profana até o fim do século XIV é menos, em quantidade, do que o que chegou até nós de Bach, por exemplo. A principal razão dessa irreparável perda foi obviamente a precariedade da notação musical até meados do século XIII; outra foi a aversão da Igreja pela música profana. É preciso não esquecer que a Igreja Católica teve um quase completo monopólio sobre a cultura até o fim da Idade Média.

Em consequência, apenas nos séculos XI e XII veio prevalecer um estilo musical inteiramente secular com alguma sustentação. Uma tradição de trovadores nobres e comuns, os Troubadours, escrevendo em provençal, os Trouvères do Norte da França, e, mais tarde, os Minnesänger da Alemanha – legou-nos pouco mais que duas mil canções, o que corresponderia em duração ao conjunto de cantatas de Bach, por exemplo. Entretanto, essas canções, incluídas em algumas compilações, em sua maioria organizadas por iniciativa de monges, durante os séculos XII, XIII e eventualmente XIV, são frequentemente falhas. A notação musical, quase sempre restrita a neumas simples, é imprecisa e inconsistente. Um cuidadoso trabalho de reconstituição por intermédio do confronto de coletâneas diversas, com notações musicais complementares, foi, felizmente, possível durante essa segunda metade do século XX para uma parte dos manuscritos descobertos.

A mais famosa dessas coletâneas de músicas profanas escritas nos séculos XI e XII leva o nome de Carmina Burana. A compilação foi realizada por monges beneditinos possivelmente no final do século XIII, contendo duzentos poemas em latim de procedência francesa e alguns em alemão. Dessas canções, trinta e três foram esplendidamente reconstituídas e editadas em discos em 1965 por Binkley e seu Studio der frühen Musik, que àquela época era chamado de Quarteto de Música Antiga. Em dois discos, essa coleção é imprescindível para quem quer que se interesse um pouco por música antiga. Uma restauração mais completa em cinco discos, e de igual qualidade, foi editada mais recentemente pelo Clemencic Consort.

A partir dessa mesma coletânea de canções, Carl Orff perpetrou a sua fantasia, também denominada Carmina Burana, que combina as técnicas orquestrais experimentadas por Stravinsky em As Bodas com melodias Medievais extraídas de várias fontes, inclusive d’O Livro de Daniel, que comentamos na semana passada*.

Ainda o grupo sob a direção de Binkley gravou uma bela coletânea de canções alemãs, algumas contidas também no Carmina Burana. O disco contém ainda outras de Vogelweide, Von Reuenthal, Von Brennenberg etc., expoentes da canção alemã denominada Minnesang, ou seja, Canção de Amar.

O Studio der frühen Musik editou ainda o cantador galego Martim Codax, do século XIII, em conjunto com uma coleção de obras de Bernart de Ventadorn (ou Vendatour), um dos mais decantados trovadores, em mais um louvável esforço de reconstituição do mundo musical da Idade Média.

É preciso não esquecer a enorme diferença cultural existente entre o homem da Idade Média e o de hoje. Em primeiro lugar, apesar do vertiginoso crescimento populacional a partir do século VII, o número de habitantes da Europa no século XI era pouco mais que o dobro da população da Grande São Paulo de hoje. Apesar disso, as guerras eram freqüentes, como também as epidemias. O plebeu era assim atormentado pelo medo da morte e pela fome. Era analfabeto, não conhecia os rudimentos da saúde corporal e morria ignorante de qualquer forma de expressão artística. Sua vida média era muito provavelmente inferior a trinta e cinco anos. Então, como explicar a sensibilidade e delicadeza da música Medieval, que se restringia a um pequeno círculo de nobres e ricos burgueses? Certamente a tradição cavalheiresca do amor contrariado, em que predomina o amor do amor e o gesto heróico na batalha.

Os versos desses músicos-poetas dos séculos XI, XII e XIII, em sua obstinada dedicação ao amor, ao heroísmo e à Santidade de Maria, revelam uma outra face do homem da Idade Média, bastante diversa daquela do monge disciplinado e contrito da tradição Gregoriana.

O mais famoso dos trovadores foi certamente Adam de La Halle, e sua obra-prima – A Representação de Robin e Marion –, é ainda hoje a mais conhecida do século XIII. Novamente é o quarteto de Música Antiga, Studio der frühen Musik, que toma a dianteira, com uma excelente coletânea da música de cancioneiros contemporâneos de de La Halle, a qual inclui A Representação de Robin e o esplêndido Llibre Vermell. Menos bem-sucedido, mas aceitável, é a versão do Cambridge Consort sob a direção de Joel Cohen. Alternativa razoável é aquela do Pro Musica Antiqua, sob a direção de Cape. Em associação com Coro de Câmera Von der Vogelweide, o Studio der frühen Musik oferece ainda uma outra coletânea bastante atraente da música de trovadores, sob o título genérico de Música da Idade Média.

Para as feministas, sugiro a imediata aquisição de um disco magnífico intitulado Cansós de Trobairitz, apesar de não estar convencido dos argumentos interpostos em favor da existência de uma tradição de cantadoras femininas. Mas o disco é excelente, o Hespèrion XX insuperável e a sedutora música da Condesa de Dia, para dizer o mínimo.

Outros intérpretes respeitáveis dessa tradição musical são o Chanterelle del Vaslo e o Conjunto Guillaume Dufay.

*Ver artigo: “Volta aos dramas litúrgicos típicos do período Medieval” – 16/12/1984.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 23/12/1984.

Carmina Borana

Carl Orffplay

https://youtu.be/GXFSK0ogeg4


Imagem:  “O jardim do Éden”

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