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Quando em 1854 a Sociedade Bach indagou à diretoria do conservatório de Praga a respeito das partituras que tinham pertencido ao conde Sporck, que havia sido governador da Boêmia ao tempo de Bach e que supostamente teria tido em sua posse algumas partes da Missa em Si Menor, a resposta foi desencorajadora. “Muitos anos atrás um punhado de música velha foi doada, outra parcela perdeu-se e alguma coisa serviu aos jardineiros para envolver troncos de árvores”. Com isso ficou a humanidade sem as partes originais do Osana, que não foram localizadas em outros lugares. Mas poderia ter sido pior. Se não fosse a obstinação de Emanuel, o editor-compositor, possivelmente só teriam escapado as partituras de Kyrie e do Gloria. E muito dessa obra-prima universal teria sido perdida. Felizmente os tempos mudaram e hoje há, até mesmo, uma grande diversidade de interpretações gravadas da Missa em Si Menor.

Não conheço nenhuma versão dessa obra máxima dos tempos dos 78 rpm que mereça ser mencionada. Foi somente na década de 50 que surgiu a histórica gravação de Scherchen que, com seus ritmos ferozes, arrebatou a imaginação do melômano de então. Nunca antes fora vislumbrado tanto vigor e tanto brilho na música de Bach e nunca suas trombetas soaram tão alto. Todavia, quando reeditado vinte anos depois, a exuberância de Scherchen já nos parecia gratuita. E agora, temos a sensação de que a versão de Scherchen foi, em grande parte, equivocada. Embora reconheçamos o muito que foi revelado nessa versão antológica.

Se Scherchen teve um herdeiro foi Richter, que corrigiu alguns dos excessos de Scherchen, recuperando parcialmente o sentido religioso, senão litúrgico, dessa Missa. E que magnífico grupo de solistas vocais (Stader, Töpper, Haefliger, Fischer-Dieskau e Engen). Novamente a soberba direção de coros e precisão instrumental assistem o dirigente da Orquestra Bach de Munique. Richter por vezes me lembra Elia Kazan, excelente diretor de atores e cenarista, mas que, frequentemente, se perde pela falta de visão global.

Parece às vezes incompreensível que, após Scherchen e Richter, tenha sido possível acontecer a interpretação da Missa em Si Menor de Klemperer. Não apenas porque tenha sido conceitualmente inapropriada ou estilisticamente ultrapassada, embora isso seja verdade, mas antes pelo seu inerente desequilíbrio formal. Mas a sinceridade de Klemperer, sua fervorosa devoção, sua integridade e seu amor à vida, enfim, sobrepujam todas as suas imperfeições formais. Não é uma versão tão bem-sucedida, talvez como aquela da Paixão Segundo São Mateus; não obstante, merece nossa atenção. Dignos coadjuvantes são Giebel, Baker, Gedda, Prey e Crass e a New Philharmonia está impecável. No extremo oposto temos a interpretação de Harnoncourt, com o seu Concentus Musicus de Viena. E embora consiga alguns momentos de inquebrantável monotonia, como no Quoniam tu solus sanctus, o resultado geral é gratificante, havendo momentos de grande densidade emocional.

Não consigo entender o que Karajan tentou fazer com a Missa e bastou-me uma audição para desistir definitivamente. Ele consegue ser quase tão grotesco quanto Bernstein. E não é porque a música de Bach não comporte personalismos, ou contrição, ou drama e até mesmo algum romantismo, pois tudo isso abunda na interpretação de Jochum que, inegavelmente, consegue conciliar expressividade e autenticidade. Marshall, Töpper, Pears e esse surpreendente Kim Borg são dignos parceiros. Apenas a Orquestra da Rádio Bávara parece às vezes insuficiente.

Creio, entretanto, que minha versão preferida, como também ocorre com a Paixão Segundo São Mateus, é aquela de Münchinger com a Orquestra de Câmera de Stuttgart. O modesto Coro da Academia de Canto de Viena está excelente. Ameling, Minton, Watts, Krenn e Krause são eficientes solistas vocais e não poderiam ser de melhor qualidade os instrumentos principais. Como sempre é esse incomparável sentido de equilíbrio de Münchinger que lhe permite ultrapassar as demais versões sem grandes dificuldades. Somary e Corboz nos oferecem edições aceitáveis um pouco à maneira do velho Scherchen ou de Richter. Muito ritmo e muito brilho com boa dose de convicção. Alguns ainda poderão encontrar a versão de Anthon van der Horst dos anos 60 que rivalizou com Richter por algum tempo. Merecem também menção as interpretações de Rilling e de Marriner, ambas bem-postas, mas sem distinção.

Como se vê temos grande variedade de gravações à nossa disposição pois, com a exceção talvez de três ou quatro das que foram mencionadas acima, são elas encontráveis com relativa facilidade. E há trinta anos apenas ficamos maravilhados quando lançada aquela primeira versão de Scherchen. Não deixa de ser tranquilizadora essa relativa generosidade. Além do mais, com a exceção de Mozart, é Bach o compositor do qual maior número de gravações existe atualmente em catálogo.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica.  São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 01/01/1984.

Johann Sebastian Bach
Misa en si menor/B minor, BWV 232
Münchener Bach-Chor & Münchener Bach-Orchester
KARL RICHTER
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