Em Destaques, Música

A polifonia, a variedade de timbres, o volume sonoro, enfim tudo parece estar do lado da orquestra. Para contrapor-se, o piano dispõe, é verdade, da graça e da leveza. Mas também recorrerá à força bruta, ao drama, à violência, quando se fizer necessário. E, por sua vez, a poderosa orquestra recorrerá à sedução, à fragilidade, à compaixão mesmo, invertendo com o piano as posições que lhe são peculiares. É uma luta em que vale tudo. Exatamente como em um casamento. Por momentos predomina a orquestra, em seguida é o piano que assume o comando. Há períodos de paz e de entendimento em que ambas as partes colaboram. Depois, indignados, se insurgem contra o destino. Há disputas e irresistíveis reconciliações.

É natural que nesse clima de dramaticidade explícita, a forma sonata se deixa atropelar. O contraste passa a ser a saída fácil para manter a atenção do ouvinte. Eis por que alguns autores consideram o concerto para piano como uma forma superficial, sem a concentração introspectiva de uma sonata para piano ou de um quarteto de cordas, e sem a tensão emprestada pelo coletivo homofônico de uma orquestra à sinfonia. Teriam razão se estivéssemos restringindo nossas discussões aos campeões de popularidade, aos Concertos de Chopin, Mendelssohn, Grieg, Tchaikovsky, Liszt e também Schumann.

Mas há também aqueles que rejeitaram o teatral gratuitamente oferecido pela fórmula exuberante. Há tanta tensão nos Dois Concertos para piano e orquestra de Brahms quanto em qualquer de suas Sinfonias. Disso ninguém duvida. Mas foi Mozart quem melhor soube usar essa paradoxal hibridização que constitui o concerto moderno, o estilo narrativo dialético da forma sonata, inerentemente introspectivo de um lado, e de outro, a teatral antinomia física e ideológica entre o socialismo coletivo orquestral e o hipernarcisismo do individualista instrumento solista. Talvez simplesmente porque tenha sido ele o compositor que melhor harmonizou interiormente esses dois polos antagônicos.

São muitos os Concertos de Mozart que mereceriam figurar dentre os dez melhores, ou seja, dentre os dez por mim preferidos. Certamente o telúrico nº 24, em Dó Menor, KV 491, trágica reflexão sobre a condição humana, e também sua contrapartida, o nº 25, em Dó Maior, KV 503, a olímpica imagem de heroísmo do semideus conquistador da natureza e dos sons do universo. Também o dionisíaco nº 22, em Mi Bemol Maior, KV 482, onde o esplendor intelectual hedonista impera – e onde tudo é graça, tudo é harmonia, perfeição. E, para finalizar, obviamente, o mais popular dos Concertos de Mozart, o nº 20, em Ré Menor, KV 466, essa obra imensa de drama sem tragédia, de esplendor sem espetáculo, de extrovertida emoção, mas sem qualquer traço de autocomiseração; enfim o equilíbrio apolíneo de que só Mozart foi capaz.

A despeito de meu particular entusiasmo pelos Concertos de Mozart, sou obrigado, em nome do mesmo, sendo de proporções que é o apanágio desse compositor, a passar adiante. De Beethoven a seleção recai sobre esse exuberante último concerto seu para piano e orquestra, o Imperador, nº 5, em Mi Bemol Maior. Em seguida é preciso considerar Brahms e seus dois magistrais Concertos para piano que, apesar do abismo que entre eles existe, quanto à concepção, merecem ambos ser escolhidos, por certo. O Primeiro pelo virtuoso ímpeto e agressiva ousadia do adulto recente, para não dizer jovem no caso, e o Segundo pela reflexão madura sobre as vicissitudes e as armadilhas de vida. São obras indissociáveis. Devem ser ouvidas uma em seguida da outra, a conquista e a reconciliação com a vida. À maneira de Brahms, bem entendido. Depois de Brahms não vejo senão Bartók, de quem escolho o mais persuasivo dos três, física e emocionalmente. O Segundo, com esse massacrante primeiro movimento, uma máquina de moer almas. E a gloriosa recompensa do liberador terceiro movimento.

Agora passamos para os demais instrumentos. Sobra espaço para apenas dois. O concerto para violino é uma fórmula infeliz. Não foi à toa que Mozart a abandonou tão cedo. E tão poucos compositores tenha, de fato, conseguido explorá-la com sucesso. Novamente deixamos de lado os popularescos Concertos de Mendelssohn e Tchaikovsky. E com pesar os de Beethoven, Stravisnky, Prokofiev, Berg e Bartók. E elegemos o de Brahms, que resolveu o problema de balanço, escamoteando um pouco o papel do violino, como bem apontou Joachim. Para fechar a lista, escolho esse esplendoroso Concerto para clarineta em Lá Maior KV 622 (se possível no instrumento para o qual foi concebido, a clarineta basset), de Mozart.

Mozart

Concerto for Clarinet and Orchestra in A Major, K. 622: I. Allegro

play

Martin Fröst http://youtu.be/DVXFONkLPok

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p.


Créditos de imagem: 
audio-activity.com

Facebooktwitter