Em Destaques, Música

Que o leitor me perdoe o estilo intimista, quase confessional, que deliberadamente assumo no comentário que segue. Mas afinal, não é a experiência estética proporcionada pela audição de uma obra musical em grande medida de natureza introspectiva, existencial mesmo?

Frequentemente me concentro por semanas, por meses mesmo, em um único compositor. Às vezes escuto, por exemplo, toda a obra da terceira fase de Beethoven com vários intérpretes, e fico a tal ponto imerso nesse peculiar universo que preciso, para me recompor, de uma semana ou mais, sem ouvir qualquer outra música, mesmo aquelas do próprio Beethoven, mas de outro período.

É claro que, quando em um concerto, adapto-me rapidamente ao passar de um autor para outro, mesmo nessas miscelâneas promocionais em que se justapõe um extrovertido Liszt ao mórbido César Franck. ou um descontraído Vivaldi ao elaborado e premeditado Monteverdi. E sobrevivo.

A minha convicção é que atuamos como se tivéssemos vários intelectos empilhados, várias matrizes de percepção, cada especializado em uma linguagem específica. Não uma linguagem formal, uma tonal, outra dodecafônica, outra modal, mas algo muito mais sutil e subjetivo. Pois afinal os meios de expressão, em sua globalidade, necessários a tantas semânticas, tantos vocabulários, tantas gramáticas mesmo, são infinitos. Então como é possível a um mero mortal compreender discursos musicais tão diversos?

Talvez porque o intelecto humano seja justamente isso, uma imensa pilha de experiências e habilidades, acumuladas desde tempos imemoriais. Funcionamos como se fôssemos um imenso main frame e um lento e viciado sistema de information retrieval que seleciona para cada acontecimento estético, cada audição musical, o software específico. Ou melhor, como o computador de quinta geração que desenvolve e agrega ele mesmo, permanentemente, um software, uma linguagem específica, para cada sensação nova. E depois basta chamá-la de nossa memória quando a ocasião se apresenta.

Tudo se passa como se cada ouvinte, cada José real, se desdobrasse em miríades de Josés especializados, capazes, cada um, de entender uma única linguagem. Somos cada um de nós a superposição de infinitas matrizes estéticas. Apenas entregamos a responsabilidade a uma delas específica, a cada solicitação particular.

Se assim não fosse, então como poderíamos explicar as lágrimas que explodem tanto quando ouvimos o molto adagio do Quarteto Op. 132 (terceiro movimento), ou quando se vê a cena do comediante decadente, Calvino, procurando o fictício botão, em Luzes da Ribalta de Chaplin. A composição química do líquido excretado pelos órgãos de visão pode ser o mesmo, mas as personalidades são distintas, as matrizes da percepção são específicas.

Eis por que devemos ter cuidado e não deixar um desses eus estéticos assumir controle. Tenho um amigo mineiro, por exemplo, que se deixou dominar pela sua matriz bachiana e a tal ponto foi subjugado, que nunca mais conseguiu convocar outra qualquer de suas matrizes que possivelmente acabaram por se atrofiar.

Mas também é possível que lá estejam intactas, em estado de coma, ou de hibernação. E talvez seja possível convoca-las um dia, uma a uma, todas essas personalidades, para a vida. Mesmo porque é uma responsabilidade excessiva essa de sepultar tanta gente sem dar-lhes a oportunidade de viver.

Mas é bom lembrar que, para recordar um eu estético há muito tempo em hibernação, é preciso prolongada e intensa dedicação. Ao leitor que resolver explorar essa teoria advirto, pois, que há perigos.

Conheço casos de melômanos bem intencionados que não conseguiram acomodar tantos eus distintos, tendo acabado no asilo de loucos, tais eram os conflitos e as agressões entre personagens tão díspares. É preciso aprender desde o início a impor-lhes a necessária disciplina, e fazer calar todos os demais, quando um deles estiver no pódio.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p.

Charles Chaplin

Luzes da Ribalta (1952) – Legendado

play

http://bit.ly/1DsksdW


Créditos de imagem: flatoutcombr.c.presscdn.com

 

Facebooktwitter