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Eu não ficaria de maneira alguma surpreso se algum musicólogo sensacionalista viesse a público para afirmar que o único oratório de Haendel é justamente O Messias. De fato, há uma diferença fundamental entre essa obra e as demais peças de Haendel tradicionalmente classificadas como oratórios. É bom dizer que o próprio Haendel evitou por vezes essa denominação, mais frequentemente preferindo terminologia menos comprometedora, tal como, por exemplo, drama sacro.
Em realidade o oratório veio a significar uma opção oportuna para Haendel, quando o bispo de Londres começou a implicar com a ópera. Contando com a relativa intimidade que a população dessa cidade tinha com a Bíblia, Haendel encontrou no drama litúrgico um substituto oportuno. Além do mais, com a dispensa de cenários e de encenação, ficavam significativamente reduzidos os custos de produção. E isso não era tudo, pois deslocando parcialmente o centro das atenções das árias para os coros, cujo número seria acrescido nos oratórios, Haendel se livrava das atribulações e dos elevados custos financeiros associados à participação das prima-donas da ópera.
Assim, a invenção do oratório inglês foi antes de tudo um grande achado para Haendel. Há, entretanto, outro fator que não foi considerado pelos seus biógrafos e analistas. Sem as cantoras-estrelas ficou Haendel destituído de seus objetos mais frequentes de paixão, o que talvez tenha sido uma autêntica perda, embora não haja evidência de enfraquecimento de sua inspiração. Muito pelo contrário, essa derradeira fase de sua vida artística foi talvez a mais profícua.
Se o leitor percorrer a literatura crítica sobre a obra de Haendel verá que há muito pouco do ponto de vista formal que distinga a sua ópera de seu oratório, além da maior incidência de trechos corais e consequente redução do número de árias. O clima ainda é dramático, apenas os temas são extraídos da Bíblia. É verdade que os coros não apenas se multiplicam no oratório, mas também assumiram um papel diverso daquele da ópera, pois deixa de ser um acidental agrupamento de indivíduos para representar uma nação, um povo, ou eventualmente um testemunho metafísico, exatamente como na tragédia grega. Apesar disso, entretanto, não há nos oratórios qualquer caráter verdadeiramente confessional. Tenho a impressão que fora o londrino melhor familiarizado com os clássicos gregos, teria Haendel se dedicado preferencialmente a essa tradição.
Mas O Messias é um verdadeiro oratório sacro, aproximando-se mais de uma extensa ode do que de um drama construído sobre uma narrativa extraída da Bíblia como são, em sua maioria, os Oratórios de Haendel. Apenas o Israel no Egito compartilha com O Messias essas características, embora falte-lhe o fervor religioso que impregna a obra-prima de Haendel. É bom, entretanto, notar que apesar da inegável introspecção religiosa, O Messias permanece antes de tudo um espetáculo com a finalidade de entretenimento, para o público e para os executantes igualmente.
Há mesmo inerente sensualidade na música religiosa de Haendel, que não está de forma alguma ausente d’O Messias. E ninguém melhor que Sir Thomas Beecham soube captar esse aspecto. Subjugado, entretanto, pela absurda prática inglesa de uso de coros monumentais, que exigem para um mínimo de equilíbrio a adição de reforços instrumentais expressivos, a interpretação de Beecham assim como as de seus contemporâneos, Klemperer, Sargent etc., é espessa e desajeitada, por vezes. Sabemos hoje que Haendel dispunha de um coro de vinte vozes. A prática vitoriana com coros de centenas de vozes é, de fato, indesejável hoje. Também não é aceitável o extremo oposto, com uma dezena de vozes apenas como têm feito alguns.
O grande movimento revisionista que eclodiu no pós-guerra e que atinge em nossos dias o seu pináculo, beneficiou certamente a interpretação d’O Messias e dos Oratórios de Haendel em geral. O primeiro regente que procurou reduzir as dimensões históricas às forças envolvidas na apresentação d’O Messias foi Colin Davis em 1967 e permanece até hoje uma opção válida. Todavia, embora use um coro de quarenta vozes e uma orquestra de trinta e oito instrumentistas, muito próxima, portanto, daquelas forças correntes do tempo de Haendel, os instrumentos adotados eram modernos.
Versões mais recentes, como as de Eliot Gardiner e de Hogwood, que adotam instrumentos e técnicas da época, têm uma atração adicional. Creio, entretanto, que essas vantagens não são suficientes para deslocar a gravação de Davis. Para aqueles leitores que ficaram confusos com essa breve exposição proponho uma solução conciliadora. O pathos de Beecham para as tardes de domingo, a translúcida poesia de Davis para as sextas-feiras à noite, a expressividade radiosa de Hogwood para as manhãs de sábados e a solenidade edificante de Eliot Gardiner para os demais dias da semana.

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