Em Destaques, Música

Em 1723, Bach já com trinta e oito anos assume a posição de Kantor da Escola de São Tomás, em Leipzig. Esse posto incluía, não apenas o preparo e direção do coral, apresentações pessoais e direção artística geral, como também o suprimento das composições a serem apresentadas nos serviços semanais. Dessa obrigação resultou a maior parte das trezentas cantatas litúrgicas das quais duzentas chegaram até nossos dias. É preciso não esquecer que uma cantata de Bach tem aproximadamente as mesmas dimensões que uma sinfonia de Mozart ou uma sonata de Beethoven. Foi também durante esse último período de sua vida produtiva que Bach escreveu todos seus Oratórios, Paixões, Missas, Motetos e grande parte de sua música instrumental, principalmente aquela para órgão e cravo. Essa inacreditável produtividade corresponde à composição de um movimento a cada dois dias. E não podemos esquecer que essa agonia se repetia em quase todas as semanas com novas cantatas. Somente um editor de jornal é capaz de entender a angústia que representa esse compromisso que se renova inexoravelmente a cada momento que é cumprido, como a Fênix que renasce das próprias cinzas.

Mas, se por um lado lamentamos a tortura a que foi submetido esse artista gigantesco, por outro, agradecemos o absurdo contrato de trabalho a que foi submetido Bach, sem o que o imenso manancial de música que representa o conjunto de Cantatas Sacras não existiria hoje, talvez.

A única tentativa de edição, gravada em discos, do conjunto integral das Cantatas de Bach é devida à Telefunken que se valeu de dois grupos profissionais. O primeiro tem como base o Concentus Musicus, de Viena sob a direção de Harnoncourt e se responsabiliza por pouco mais de três quartos das cento e quarenta Cantatas Sacras já lançadas*. O segundo é baseado no Leonhardt Consort dirigido por Leonhardt. A esses dois grupos se associam competentes solistas e coros. O esforço é mais que elogiável e qualquer amador ou profissional não pode deixar de reconhecer a elevada categoria acadêmica em que se situam essas interpretações. Todavia, quase sempre a preocupação formal excessiva, principalmente nas obras sob responsabilidade de Harnoncourt, destitui a espontaneidade e disseca o sentimento evocativo e teor dramático que são essenciais a muitas dessas composições.

Para contraste, menciono uma outra série editada na Europa sob a denominação Cantatas, pela Bach-Studio, na primeira metade da década de 60 e, posteriormente, nos EUA pela Vanguard. Não são mais que trinta Cantatas em que uma pluralidade de coros e pequenos grupos instrumentais semiprofissionais ou amadores se associam a competentes solistas sob a direção de um conjunto de jovens regentes. A proveniência desses participantes é a mais variada possível, pois cada igreja e cada cidade, pequena ou média, tem sua orquestra Bach, ou seu coro Bach ou algo muito parecido. Essa despretensiosa série reproduz, de certa maneira, o espírito litúrgico que prevalece nos templos que congregam a pequena burguesia alemã com que Bach conviveu e para quem escreveu essas mesmas Cantatas, principalmente aquelas compostas em Leipzig.

Mas também as mais introspectivas Cantatas de Cöthen escapam à percepção de Harnoncourt, que com seu excessivo intelectualismo não parece compreender sejam as espontâneas e puras reflexões litúrgicas das obras de Leipzig, sejam as inquietações íntimas de Bach do Cöthen.

A permanente referência à lição específica do dia sustentada pela inclusão do coral particular àquela ocasião litúrgica, adotada por Bach em Leipzig, subordina a expressão musical ao sentimento popular religioso daquele segmento único da cultura protestante alemã. E é por isso, talvez, que os grupos amadores e semiprofissionais inseridos nesse particular setor da burguesia europeia melhor exprimem a música de Bach que os superprofissionalizados agrupamentos de músicos que atuam sob a direção de Harnoncourt e de Leonhardt.

É claro que, como referência, a coleção da Telefunken permanece inestimável. Todavia, para seu deleite pessoal não deixe de adquirir essas pequenas joias da série Bach-Studio, se por acaso as encontrar.

Outra coleção de importância é aquela de Karl Richter e Coro e Orquestra Bach de Munique, já com quase setenta e três Cantatas. O estilo que sempre caracterizou esse grupo é pleno de vigor e de ritmos incisivos, mas às vezes atropela a sensibilidade e o sentido de proporções. Em todo caso, permanece uma opção válida. Entre essa série da Archiv e aquela da Telefunken eu hesito, pois, os defeitos e qualidades de ambas, embora inteiramente diversos, se equivalem.

Dentre as preciosidades clássicas incluem-se as vinte Cantatas dirigidas por Günther Ramin com a Orquestra Gewandhaus e o Coral de São Tomás de Leipzig, reeditada recentemente pela Eurodisco. Seu sucessor é Kurt Thomas que dirigiu com os mesmos conjuntos algumas Cantatas editadas pela Archiv e com a mesma competência de Ramin. Igualmente inestimáveis são as poucas interpretações de Lehmann com o Coro de Motetos e Orquestra Filarmônica de Berlim. E não podemos esquecer de Wöldike de quem ainda é possível encontrar algumas interpretações clássicas.

Werner com o Coro Heinrich Schütz de Heilbronn e a Orquestra de Câmera Pforzheim editou uma bem-intencionada série, mas com resultados heterogêneos. E ainda há dezenas de intérpretes esporádicos. Entretanto uma coletânea que possa ser considerada inteiramente satisfatória, pela qualidade ou pela extensão, ainda não existe.

*N.E.: Até 1983, data desse artigo, foram lançadas cento e quarenta Cantatas pela Telefunken. Cabe citar que nos próximos artigos escritos em 1988, a série de Cantatas lançadas pela Telefunken foi completada, tendo-se assim, um número de cento e noventa e nove Cantatas de Bach, gravadas por Leonhardt e Harnoncourt.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 18/12/1983.

Johann Sebastian Bach
Seleccion de Coros de Cantatas
Wiener Sängerknaben y Chorus Viennensis
Concentus Musicus Wien
N. Harnoncourt
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