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Vamos supor, por um momento, que alguém lhe conte, a seguinte estória: Em uma floresta, um jovem que lá se perdera é perseguido por uma enorme serpente e desmaia. Mas é salvo por três mulheres de preto que matam o monstro. As três se apaixonam incontinentes pelo jovem, que recobra os sentidos diante de um estranho personagem vestido inteiramente com plumagens de pássaro. Esse indivíduo tenta convencer o jovem de que fora ele quem o salvara da serpente.

Mas é punido pelas três damas de negro que mostram ao mancebo extasiado o retrato de uma linda moça. Surge então uma espécie de fada, não tão boa assim, que na qualidade de mãe da moça da gravura, implora ao jovem que vá salvar a filha das mãos de um perverso feiticeiro que a teria raptado. As três damas entregam ao jovem uma flauta encantada e ao homem pássaro um carrilhão mágico com o que poderão vencer todos os obstáculos a caminho do castelo do feiticeiro-raptor.

Assim começa o prosaico e inverossímil enredo daquela que é talvez a mais querida ópera (Singspiel) de todos os tempos. Coube a Mozart transformar essa banalidade literária em indiscutível obra-prima. Tentativas para explicar o milagre de transformação englobam uma grande diversidade de teorias extremamente perspicazes inclusive a hipótese de que oculta essa uma hermética apologia da maçonaria.

A defesa dessa hipótese é bastante eloquente. E talvez até seja verdadeira. Entretanto, a magia, a sedução d’A Flauta Mágica não deriva desse sentido oculto. Nossa atração pela obra é inteiramente independente de seu conteúdo simbólico. É mesmo possível que a reflexão sobre todo esse hermetismo seja intelectualmente estimulante. Mas é uma exterioridade inconsequente e nada adiciona ao acontecimento estético que experimentamos com a audição dessa obra-prima. É em nível absolutamente trivial que percebemos essa narrativa e o milagre advém da imensamente efetiva arquitetura musical engendrada pelo autor que, por um passe de mágica, consegue simplesmente com sons, tornar crível aquele pastiche absurdo. Eis o grande mistério.

Mas talvez possamos compreendê-lo um pouco melhor. A pista nos é fornecida por Goethe que durante muito tempo pensou em compor a sequência da ópera de Mozart. O pensador e literato alemão, que tinha veleidades de compositor, considerava essa ópera de Mozart plena de fantasia e de humanidade. Em realidade, o que elogiava n’A Flauta Mágica era o que ele valorizava no homem e o que inseria em sua própria obra literária.

A narrativa da obra parece servir para Goethe assim como para muitos outros como uma espécie de moldura, de referência, que preenchemos com nossas próprias visões. Eis porque a mais banal estorinha se ilumina com a música sublime de Mozart e nossos sonhos mais cândidos. Um libretto de melhor qualidade não nos concederá espaço. E A Flauta Mágica seria outra coisa, talvez. Viva, pois, a mediocridade de Schikaneder, o inconsequente libretista-produtor da ópera. Ou será que tudo previra, e intencionalmente se apagara, se reduzira para deixar fulgurar o gênio de Mozart?

Em compact disc a melhor versão é, até certo ponto, a fulgurante e ousada interpretação de Solti. Karajan, mais detalhista, entretanto, agradará a muita gente. Davis é, como sempre, equilibrado. As magníficas e antológicas interpretações de Beecham e Furtwängler serão um dia reeditadas. Os insaciáveis, como eu, esperarão também aquelas versões de Klemperer e Böhm.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 25/12/1988.

Wolfgang Amadeus Mozart

The Magic Flute

Philharmonia Orchestra & Chorus

Otto Klemperer

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Imagem: G Macdomnic/Lebrecht

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