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Que música devemos escutar ao amanhecer? Essa é uma questão fundamental. Porque ela se relaciona, em última análise, com a precedência da luz sobre o som no universo anímico do homem. Ou seja, o que teria vindo primeiro, o som ou a luz? No começo foi o Verbo. E o Verbo estava com Deus. E o verbo era Deus, disse João, o místico, o mais sublime dos evangelistas. É bem verdade que, de acordo com o Gênese, a primeira obra criativa, aparente de Deus foi a luz. Mas antes da luz, havia o vento, e vento é som. Havia o caos, e caos é ruído, é som.

O Rigveda por sua vez informa que no começo estava o Criador. Com ele estava o Verbo, e o Verbo era realmente o supremo Brama. Para os druidas, diz Maryse Choisy, que foi Deus que, ao pronunciar seu nome, fez com que todas as coisas fossem criadas, inclusive a luz. O instrumento da criação foi a palavra. É a palavra que representa, em todos os documentos primeiros, a ação, e não a luz.

É com a voz que comanda o criador, e é pela voz que a ordem se estabelece. E o Zohar confirma que a voz emite os verbos criadores, os maamaroth. É claro que todos esses textos estão eivados de ambivalências, e encontraremos, ocasionalmente, indicações contraditórias em outros contextos. Todavia, as afirmativas mais frequentes e mais claramente preconcebidas, intencionais, são quanto à precedência do som sobre a luz.

Eis por que temos a obrigação de ouvir música ao romper do dia. Ou então dormir até o meio-dia. Qualquer outra solução é pouco civilizada ou, pior ainda, é antinatural. Aliás, quem quer que seja que tenha vivido no campo sabe que cantam os pássaros antes que chegue a luz. Só as galinhas é que esperam o dia para começar a cacarejar. Mas as galinhas e os tenores são pássaros muito pouco musicais. Então quais são as músicas recomendadas para audições matinais?

Ninguém certamente gostaria de acordar sob o som do Requiem de Brahms, ou do de Berlioz, ou mesmo do de Mozart. São obras para o fim da noite. Ou, talvez, para uma dessas tardes chuvosas de domingo. Mas se o domingo amanhecer radioso e se ninguém na casa estiver doente, nada mais oportuno do que O Messias de Haendel. Se for uma dessas manhãs alegres de primavera em que as corruíras gorjeiam e as flores se iluminam, em que a brisa ligeira faz dançarem as árvores e principalmente quando há orvalho, o Magnificat de Bach se torna obrigatório.

Com o orvalho podem ser servidos também algumas dessas exaltadas Cantatas de Bach, como a 51 ou mesmo a 147, em que o som parece se propagar à velocidade da luz e colorir todos os cantos do universo, mas, é claro que também os Te Deum de Utrecht ou de Dettingen de Haendel são apropriados. Como também seria recomendável A Criação de Haydn. É preciso, entretanto, reconhecer que há nessas ocasiões algo de levemente sacrílego. Uma discreta orgia pagã. E é talvez por isso que excluo Mozart. A menos que você esteja em uma igreja e a luz do sol que está para nascer vier pelos vitrais mais altos da nave principal.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p.

Haendel

“Messiah”

The Choir of King’s College, Cambridge

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https://www.youtube.com/watch?v=AZTZRtRFkvk


Créditos na imagem.

 

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