Em Destaques, Vida Nacional

Por Frei Betto

Qualquer projeto de reforma penitenciária terá de ouvir todas as partes interessadas, a menos que fique no papel e seus recursos abocanhados pela corrupção. São partes interessadas: presos e suas famílias; agentes penitenciários; funcionários qualificados (psicólogos, médicos, mestres de oficinas etc); advogados e juízes; além de instituições como a Pastoral Carcerária, que lidam há décadas com o universo prisional.

Cada ponto de vista é a vista a partir de um ponto. Ouvir uns e fazer ouvidos moucos a outros é correr o risco de cair na cilada das versões dos que não querem mudar quase nada, pois isso significaria fechar a boca da cornucópia que alimenta a corrupção de funcionários públicos, de agentes penitenciários a juízes.

Quando me transferiram para o Carandiru havia ali 5 mil detentos. A capacidade era de apenas 1.800. Naquela masmorra, as drogas corriam soltas, muitos portavam facas e estiletes, e havia leilões de gays (muitos à força, sob pena de levarem facadas) nos corredores dos pavilhões.

Grande parte da mão de obra era dos próprios presos: eletricistas, encanadores, pedreiros etc. O que mais me intrigou foi, na chegada, ao ser transferido da Penitenciária do Estado, passar por uma revista… feita pelos próprios presos! Era a “elite” da cadeia, que falava em pé de igualdade com a direção do presídio. Um deles, para a minha surpresa, era Ronaldo Castro, acusado de ter assassinado, no Rio, Aída Cury, crime que ocupou muitas edições da revista O Cruzeiro.

Fui falar com o diretor, coronel Guedes. Como admitia tantos abusos e ilegalidades ali dentro? Reagiu sem tergiversar: “Isso aqui é um barril de pólvora. Pode explodir a qualquer momento. Meu papel é retardar a explosão. Por isso faço vista grossa. Aqui só não permito duas coisas: mulher e helicóptero.”

A explosão aconteceu em 1992, e resultou no massacre de 111 presos pela PM de São Paulo. Até hoje os responsáveis não sofreram condenação definitiva.

Na Penitenciária do Estado, um preso me disse ter uma arma de fogo. Perguntei como conseguira fazê-la entrar. Contou que pelo funcionário responsável pela alfaiataria. Um idoso com cara de avô da gente e do qual jamais se suspeitaria de qualquer deslize. “E ele teve coragem de trazer a arma?” “Não”, disse o preso, “mas como está para se aposentar, ameacei melar o final de carreira dele e denunciá-lo como nosso fornecedor de drogas caso não buscasse a arma em mãos de minha mulher.”

Na Penitenciária de Presidente Venceslau, as drogas entravam via funcionários. Os comparsas dos presos, soltos aqui fora, conheciam o endereço de todos eles. E ameaçavam suas famílias caso não obedecessem as ordens das gangues internas.

Havia um rebanho de vacas no setor agrícola da penitenciária. E nenhum copo de leite era servido aos presos. O diretor comercializava o produto. Além de obrigar os detentos do ateliê de pinturas a fazerem cópias de telas famosas para presentear os amigos.

Haveria muito mais a contar. Esses exemplos são suficientes para enfatizar que não haverá solução para a questão carcerária enquanto os agentes penitenciários não forem aprovados em cursos de qualificação, nos quais ética e pedagogia mereçam prioridade. O objetivo é recuperar para o convívio social homens e mulheres que ali se encontram, e não transformá-los em monstros através de torturas, castigos injustos e cumplicidade em ações ilegais. Um carcereiro mal remunerado precisa ter muita ética para se recusar a receber o dobro de seu salário mensal em troca de um celular contrabandeado para dentro das grades.

Não é preciso reinventar a roda para reformar nossas prisões. Há suficientes exemplos mundo afora de como se reduz o índice de reincidência. O que falta ao poder publico é fechar as inúmeras torneiras da corrupção no sistema. Basta fazer as contas: os recursos que o Estado gasta com esse regime de enjaulamento sumário são infinitamente superiores do que despenderia com a formação e qualificação de todos que trabalham na esfera prisional.

Soluções existem. E não incluem a multiplicação de cadeias. O que falta é vontade política para dissociar os agentes públicos da criminalidade, e acreditar que, se ninguém nasce bandido, há sempre a possibilidade de ressocializar quem infringe a lei.

O Globo: 09/01/2017.

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Frei Betto. Teólogo e Escritor.

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