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Um dos paradoxos da humanidade é que quanto maior a autoestima e o amor pela vida de um indivíduo, mais fácil é a conciliação com a morte e menos trágica a sua partida. Não houve, por certo, compositor de maior autoestima e mais egocêntrico que Richard Strauss, o que é, em parte, compreensível, pois tamanho foi o seu sucesso e o seu prestígio. Assim chegou o grande ídolo europeu aos oitenta anos, coberto de glória. Era preciso, pois, deixar um testemunho da sua heroica aceitação da morte. É preciso não esquecer que dera o nome de A Vida de um Herói, já em 1898, quando tinha apenas trinta e quatro anos, à sua prematura, mas óbvia, autobiografia sinfônica. Não lhe faltava, pois, um elevado autoconceito.

Mas antes é preciso distinguir as várias visões possíveis da morte. Quando o jovem Brahms emite em seu Requiem Alemão o testemunho de sua reconciliação com a morte, o acontecimento doloroso a que ele se referia era o falecimento de sua mãe, que por mais querida que ela fosse, ainda representava sua morte um evento externo. O quanto estaria Mozart consciente de sua próxima morte ao conceber o seu Requiem é um mistério que jamais iremos desvendar. Para Schumann, morte e loucura eram uma mesma coisa. Uma imensa tortura, talvez, mas nada absoluto.

Beethoven via a morte como um inimigo abjeto a ser derrotado. E mesmo seu Testamento de Heiligenstadt nada tem de conciliador. O surto de atividade criadora que acometeu Schubert pouco antes de sua morte, talvez seja um indicativo de sua consciência da sua proximidade do fim. Mas não há na música desse período qualquer evidência de uma reflexão sobre a morte. E Schütz ao escrever seu magnífico Canto do Cisne agiu como um profissional que no fim de sua vida faz um último esforço para deixar para a posteridade algumas ideias musicais que não tivera tempo de elaborar ao longo de sua existência. Schütz se prepara para a morte com a indiferença de um proprietário que prepara a casa para um novo inquilino. Como faria o Sancho de Cervantes.

Richard Strauss, por outro lado, é um Quixote que deu certo. A morte para ele é uma grande visitação. Não é, pois, por acaso o enorme sucesso de sua obra última Quatro Canções Derradeiras, que compôs sobre três poemas de Hermann Hesse e um de von Eichendorff. É inequívoca sua vontade consciente de um testemunho pessoal sobre a própria atitude em relação à morte, e é talvez perceptível sua disposição quanto a uma reconciliação, não apenas em relação à sua próxima morte, mas também como inexorável condição humana. Com seu habitual elevado autoconceito, assume o papel de porta-voz da humanidade e assim um pacto de convivência com a morte, identificando-a com a paz. É uma obra de imensa beleza.

Acabo de receber uma gravação com Jessye Normann dessa obra, embora indiretamente, de um amigo que teve a grandeza de reconciliar-se com a morte, da mesma maneira que fizera Richard Strauss. Também um músico de talento, José Luiz Paes Nunes, derrotou a morte com sua dignidade e sua intransigente integridade. É certo que partiu, mas não foi vencido. E a prova está nessa sua sutil mensagem. Esse disco, informo para aqueles que se comovem com as grandes lutas e com as grandes obras musicais, foi também editado no Brasil. Também será de grande serventia para aqueles que ainda não resolveram seu debate pessoal com a morte.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 04/10/1987.

Richard Strauss

FOUR LAST SONGS

Going to Sleep (Poems by Hermann Hesse).
In the Glow of Evening (Poem by Joseph von Eichendorff).
Elisabeth Schwarzkopf soprano.
Berlin Radio Symphony Orchestra.
George Szell.
From Angel LP first published 1966.

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