Em Análises e Reflexões, Destaques

Pidocchio fai pidocchio. Não há princípio mais amplo. E, em seu formato mais corriqueiro, “mediocridade gera mediocridade”, essa norma foi, no Brasil, comprovada à exaustão, nos mais diversos ambientes. Todavia sua nefasta manifestação se torna catastrófica, sobretudo no meio acadêmico. E a razão é muito simples.

Em universidades de qualidade e instituições de pesquisa, imperam como valores absolutos a qualidade, o talento e a produção intelectual. Como consequência, vários mecanismos corporativistas se desenvolvem como meio de sobrevivência da mediocridade. Ora, ao menos em sua maioria, o medíocre é humano e consequentemente tentará eliminar seu inimigo declarado, o intelectual de talento.

Eis por que, quando um medíocre ascende a uma posição de mando, ele se cerca de medíocres, que, por sua vez, também procurarão suprimir quaisquer perspectivas de realização intelectual. Não há nada mais ameaçador do que alguém mais talentoso do que nós. Por outro lado, também é verdade que homens capazes sentem uma certa aversão pela mediocridade, principalmente quando esta se arregimenta corporativamente para se defender.

Universidades e institutos de pesquisa dos EUA descobriram alguns mecanismos profiláticos que permitiriam resistir ao avanço e à proliferação da mediocridade. Em primeiro lugar, elimina-se qualquer possibilidade de participação de corporações internas na escolha de reitores de universidades, de diretores de institutos etc. Um comitê de busca, formado por notáveis que não pertencem à instituição em questão, escolhe o futuro dirigente. Esse comitê é, por sua vez, escolhido pelo colegiado supremo da instituição, também formado por membros ilustres da comunidade (ex-alunos, empresários, intelectuais), sem elo empregatício com a universidade.

Esse dispositivo é reforçado por uma série de outros mecanismos que privilegiam a reciclagem, o “sangue novo”. Por exemplo, em muitas universidades, um professor-associado (penúltima posição) não pode candidatar-se a um cargo de professor titular (posição final). Estagiários pós-doutorados, em geral, são evitados para contratos como assistentes. Outro dispositivo, de igual importância ao da comissão de busca, é a tardia estabilidade concedida ao professor ou pesquisador. Na universidade americana, o “tenure”, uma estabilidade parcial, só é obtido na última posição da carreira, a de professor titular. Em institutos de pesquisa e nas demais posições da universidade, só o talento e a produção intelectual asseguram a estabilidade. E é isso o que aterroriza o medíocre.

Pois bem, dentre as dez instituições do mundo que mais contribuem para a ampliação do conhecimento, cinco são universidades americanas. Entre as demais estão a Academia de Ciências da Rússia, que congrega todos os institutos de pesquisa do país, e o Conselho Nacional da Pesquisa Científica, da França, que se estende por quase todos os laboratórios de universidades e institutos daquela nação. Para derrotar as ameaças da mediocridade corporatizada, foi finalmente encontrada no Brasil uma fórmula institucional que, embora bem-sucedida em alguns institutos de pesquisa, ainda não foi experimentada em universidades. É o que se chama organização social (OS).

Em essência, a OS é uma sociedade sem fins lucrativos que é contratada pelo governo para cumprir uma missão de relevância social. Em geral, o próprio governo toma a iniciativa de identificar setores em que uma OS pode dar mais retorno para a sociedade em termos de qualidade de serviços, agilidade de resposta a demandas sociais ou de implementação de projetos de longo prazo que exigem uma continuidade administrativa e uma fiscalização social que as instituições tradicionais do Estado brasileiro se mostraram incapazes de prover. E elabora, com cada OS, um documento básico, denominado “contrato de gestão”, no qual são estabelecidos deveres e metas de ambas as partes, de tal maneira que, se não forem cumpridos, o contrato pode ser rompido unilateralmente. Anualmente, o contrato precisa ser confirmado, o que estabelece uma saudável dinâmica de avaliação e prestação de contas da OS à sociedade e ao governo que a contratou.

Os recursos e o patrimônio público sob gestão da OS são objeto dos mecanismos tradicionais de fiscalização pública. No âmbito federal, por exemplo, a Secretaria Federal de Controle audita as contas e, o que é mais importante, os resultados e o retorno social de cada OS. Só isso representa um imenso avanço na defesa do contribuinte, cujos impostos sustentam a máquina do Estado e que tem direito ao correspondente retorno. Bastaria esse aspecto para assegurar às organizações sociais sua absoluta legitimidade como instrumento de atuação do Estado. Mecanismos tais como formação de comitês de busca e outros podem ser acordados no contrato de gestão.
Eis como é possível obter, no Brasil, condições adequadas para o sistema de ciência e tecnologia, equivalente às características das melhores instituições de pesquisa do mundo. O que poucos percebem é que o trabalho em pesquisa é extremamente penoso, exceto para uma minoria que foi, feliz ou infelizmente, aquinhoada com uma personalidade obsessiva.

Portanto, a maioria dos pesquisadores, mesmo os talentosos, desvia-se para atribuições de rotina ou simplesmente deixa passar o tempo. Esse nefasto aspecto da condição humana é favorecido e estimulado pela vitaliciedade, pela estabilidade. É claro que forças antagônicas a essa tendência, como ambição, autoestima etc., atuam positivamente. Mas é inquestionável o fato de que a estabilidade é um prejuízo para a atividade de pesquisa, pois, além do mais, frequentemente se associa ao corporativismo.

A organização social é, pois, o melhor remédio contra o corporativismo e contra a mediocridade militante, que se tornam irremovíveis, intocáveis, em instituições estatais de pesquisa. Não é de espantar que, em qualquer oportunidade, surjam tentativas retrógradas de aniquilamento das organizações sociais. E o momento é agora, quando um governo ideologicamente propenso à proteção do trabalhador se revela inexperiente, para dizer o menos, inepto nas questões relativas à ciência e à tecnologia.

*Artigo publicado no jornal Folha de São Paulo em 14 de fevereiro de 2003.


Créditos de imagem: psicolaranja.blogs.sapo.pt

Facebooktwitter