Em Destaques, Música

É preciso compreender antes de mais nada que a música de câmera para cordas e piano é baseada em uma retórica diametralmente oposta àquela em que se fundamenta a música para cordas apenas. Enquanto a retórica dominante nessa última formação é a de colaboração e do entendimento, a da primeira é a retórica da competição e do conflito. Sob muitos aspectos o universo da música camerística reproduz o da sinfônica onde o concerto para piano é o análogo do trio ou quarteto para piano e cordas e a sinfonia se assemelha ao quarteto e ao quinteto para cordas. Enquanto a principal razão do sucesso do quarteto para cordas é da boa mescla de timbres proporcionada pela limitação a instrumentos de uma mesma família, o trio e o quarteto com piano deve ser sucesso como forma camerística ao agudo contraste entre o som percussivo do piano e a voz melódica dos dois instrumentos de cordas que o acompanham. Não pretendo com isso dizer que o piano não se ocupa do desenvolvimento de melodias na música de câmera em que participa. Entretanto, o caráter percussivo do som emitido pelo piano não lhe permite um entendimento pleno com o conjunto de instrumentos de cordas, que são irmãos de sangue. O piano é, portanto, um intruso na música de câmera e sua sobrevivência nesse ambiente hostil depende fundamentalmente do caráter dialético do discurso que seu temperamento polêmico lhe proporciona em um ambiente adverso.

Talvez seja essa a razão do sucesso frequente de interpretações de música de câmera em que os instrumentos não formam um conjunto permanente. Enquanto, por outro lado, o fracasso de grupos de cordas improvisados é regra geral (com a exceção talvez de algumas gravações do grupo de Prades de obras de Brahms).

Os grupos de instrumentistas denominados quartetos que tiveram ou têm sucessos são, ou foram, permanentes, tendo seus membros abandonado qualquer carreira como solista. Em contraste, os grupos de artistas que constituíram os trios de maior sucesso envolviam, quase sempre, artistas autônomos, com vidas artísticas independentes. É o caso do inolvidável Trio Cortot e Thibaud, Casals e do Rubinstein, Heifetz e Feuermann, ou mais recentemente Rubinstein, Szeryng e Fournier ou ainda do Istomin, Stern e Rose.

Nesses quatro agrupamentos estão alguns dos mais convictos individualistas do mundo musical de nossos tempos. Há exceções, obviamente, e o excelente Trio Beaux Arts é o exemplo mais marcante. Esse grupo aparentemente conseguiu reter certo nível de independência entre seus componentes. E é justamente o Trio Beaux Arts que nos dá a versão mais atraente do ciclo integral dos Trios para piano de Mozart. São apenas sete obras compostas, em sua maioria, no período de plena maturidade do compositor. Um desses trios tem uma clarineta em lugar do violino e é a peça melhor conhecida dentre elas. Além dos sete Trios, Mozart nos deixou apenas dois Quartetos para piano. É certamente uma produção modesta em comparação com outros autores contemporâneos como Haydn, com quase quarenta peças para a mesma combinação de instrumentos e mesmo Beethoven, de hábito tão sucinto, que nos legou nove Trios (sendo também um deles com clarineta) e duas séries de variações.

Além da intensa e eloquente versão de Beaux Arts há disponibilidade de uma serena e delicada interpretação dos Trios de Mozart pelo Mannheim. Durante muito tempo a versão padrão foi aquela de Lili Kraus, Boskowsky e Hubner, editada em 54 que foi recentemente reeditada, mas não creio que mereça nossa atenção, pois é certamente bastante inferior ao ciclo completo pelo Beaux Arts.

Por um desses mistérios da natureza não há nos catálogos atuais versões avulsas dos Trios de Mozart com grupos de solistas de grande qualidade. Se fôssemos julgar as obras individuais de Mozart pela atenção que lhes é dada pelo público e pelos intérpretes, chegaríamos à conclusão de que essa é uma forma em que Mozart não teve grande sucesso. Entretanto, acredito que é apenas um desses acasos, tão correntes na História da Música. Apenas ainda não chegou a vez dos Trios para piano embora seja, de fato, música de grande riqueza.

Os Dois Quartetos para piano, por outro lado, já foram assimilados pelo grande público e pelos próprios intérpretes. A versão que persistiu por maior tempo foi a de Horszowsky com o Budapest, gravada quando ambos já estavam em decadência. É bastante fraca, embora correta. Talvez a descrição adequada fosse desnutrida. Por outro lado, há uma versão esplendorosa de Rubinstein com o jovem Quarteto Guarneri e outra translúcida e meiga por Klien e o Amadeus. Demus com o Conjunto de Câmera de Viena é também radioso e o jovem Serkin com a experimentada ajuda de Schneider nos fornece uma bem-humorada visão dos Dois Quartetos. Existe ainda mais uma meia-dúzia de interpretações facilmente encontráveis, mas aquelas mencionadas acima são as mais satisfatórias.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 22./04/1984.

Brahms

“Piano Quartet No. 1, Op. 25 in G Minor: Andante con moto – Animato” Rubinstein & Guarneri Quartet

playhttps://youtu.be/z2Riwe9i5_M


Imagem: Richard Hausmann, Brahms, Maria Fellinger
Historic photagraphs from the Archive of the Gesellschaft der Musikfreunde in Vienna

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