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A monofonia secular na Idade Média tardia (1150 a 1400) – A primeira invenção da mulher (trovadores e troveiros)

A mulher foi duplamente inventada nos séculos 13 e 14. Um fenômeno social sem precedentes insurge pouco depois da virada do século, logo após 1100. A consolidação do regime feudal subtrai à Igreja Católica o monopólio sobre a produção musical erudita. Reis, nobres e cortesãos assumem pessoalmente o privilégio da composição poética e musical. Novos valores, novos ritos e, antes de tudo, o lazer proporcionado pelo feudalismo conformam condições para que uma tradição avassaladora se propague pela Europa a partir da França. A mulher passa a ser parte integrante do processo criativo. O poeta-músico a vê agora não como um objeto de sua obra, mas como parceira indispensável para a geração de um sonho compartilhado.
Amante e amada são igualmente causas do produto poético-musical que exprime o amor de ambos. Não há necessidade de reciprocidade, pois basta que a mulher, agora culta e sensível – e não somente bela –, exista. Não é, pois, de espantar que tenha sido esse também o período da história em que houve maior contribuição feminina à composição musical.

O fenômeno surge no sul da França, no país de língua d’oc (provençal). Os trovadores (troubadours) não apenas eclodem em todas as cortes, em todos os castelos e em todos os palácios mas também fazem um grande esforço para difundir e perpetuar sua obra poética e musical pelo registro em manuscritos. Entretanto apenas 350 melodias subsistem (25 CDs). Ao norte, país d’oil, os troveiros (trouvéres) surgem meio século depois, com o mesmo espírito. Seu legado é bem maior: excluídas as variantes, são cerca de 2.000 melodias com poemas (100 CDs).

Na Alemanha, a tradição da canção monofônica semelhante (derivada?) à francesa se estende até muito além do período aqui considerado e toma, na Idade Média, o nome de Minnesang. Um exemplo de distorção que existe sobre a abundância da música medieval nos é dado na – recentemente editada no Brasil – “História da Música Ocidental”, de Jean e Brigitte Massin (ed. Nova Fronteira), onde se afirma que “nada menos que 7.000 canções” estão incluídas no “grande” manuscrito de Heidelberg. Ora, esse belissimamente iluminado documento não inclui uma única melodia, apenas textos.

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São quatro os documentos existentes que contêm melodias, além de uma meia dúzia de fragmentos. Na minha contabilidade, são menos de 250 melodias compostas até o final do século 14, que sobrevivem até hoje da tradição da monofonia secular alemã (20 CDs).

Outro exemplo da falácia da abundância da música medieval é o que ocorre com o mais famoso códex alemão, o “Carmina Burana”, sobre o qual só se mencionam as 250 “canções” nele contidas, esquecendo-se de que apenas nove melodias lá existem e assim mesmo expressas em neumas diastemáticas (que não permitem o registro de altura). Se tantas versões musicais gravadas de tantos poemas do Carmina Burana existem, é por causa da abundância de contrafacta, ou seja, do uso de uma mesma melodia com diferentes textos, inclusive em diferentes tradições. Também uma missa do “Carmina Burana” é acompanhada de neumas.

É na tradição galego-portuguesa que ocorre uma segunda invenção da mulher. E isso graças ao purgatório, inventado à mesma época (Jacques Le Goff, “La Naissance du Purgatoire”, Gallimard, 1981).

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As discussões filosóficas e morais sobre a idéia de purgatório, desde fins do século 12, já incluem o conceito de indulgência. A concepção anterior da dicotomia inferno –paraíso deixava pouco espaço para negociação. Se o purgatório introduz uma nova esfera entre as soluções extremas, ele também flexibiliza eventuais decisões. A indulgência, entretanto, exige um mediador entre o mortal e o ser supremo, inalcançável. Os seres originalmente incumbidos dessa missão, os anjos, seres extravagantes, frios, distantes, não convenciam como confiáveis embaixadores. E os poucos santos de então eram demasiadamente humanos, terrestres, prosaicos.
Maria, humanizada e ao mesmo tempo pura, inicia, assim, a sua carreira de lobista suprema. Estava inventada a mulher-mãe, protetora e conciliadora. E assim se tornava alvo de uma das mais extensas e bem estruturadas tradições musicais da Idade Média tardia. Graças a Afonso 10º, o sábio, rei de Leão e Castela, uma coletânea das canções existentes, dedicadas ou relativas a Maria, foi compilada entre 1250 e 1280. Esse conjunto é composto por pouco mais de 400 “cantigas” (30 CDs).

Além das “Cantigas de Santa Maria”, apenas seis canções do cancioneiro Martín Codax sobreviveram da monofonia ibérica secular até fins do século 14 (O “Livre Vermeil” de Montserrat inclui apenas uma obra monofônica). Entretanto uma grande parte das canções incluídas nos quatro manuscritos principais, referentes às “Cantigas de Santa Maria”, se encontra também em coletâneas distintas, fora dos limites da Península Ibérica, além de grande número de contrafacta (esse denomina obras em que a melodia é emprestada de outra composição. Somente o texto é original).

Um cálculo simples mostra, portanto, que toda música monofônica composta na Europa entre 1150 e 1300, inclusive as extensões das tradições dos troveiros e dos minnesängers até o fim do século 14, é, em quantidade, inferior ao conjunto das obras vocais autênticas de Georg F. Haendel (1685-1759) que subsistem (200 CDs).

Um último corpo de composições monofônicas da Idade Média a ser considerado aqui é aquele relativo aos dramas litúrgicos, para litúrgicos ou abertamente profanos. É bom lembrar que a igreja medieval sempre combateu o teatro, foco de rebelião e de subversão popular (como o é até hoje, graças a Deus). Todavia, talvez apenas para poder competir com representações populares, começa a igreja, a partir do século 10º, a incorporar, pouco a pouco, representações de episódios da Bíblia em seus ofícios. Sobrevivem cerca de 600 textos de peças (ou dramas). Muito pouca música nova, entretanto, resta dessa tradição que certamente foi bastante ativa durante a Idade Média tardia. Exceção gloriosa é o “Ludus Danielis” (Drama de Daniel), com suas 51 únicas (o termo “única” é usado quando a melodia não é encontrada em nenhum outro manuscrito). São composições simples e curtas, mas esplêndidas.

Outro exemplo notável de drama litúrgico é aquele denominado “Ordo Virtutum”, composto em meados do século 12 pela abadessa Hildergard von Bingen, mulher de grande poder político e talentos literário e musical. Essa espécie de sibila alemã compôs ainda uma série de brilhantes poemas musicados originais. O total de sua obra compreende 77 peças e ocupa oito CDs. Poucos outros dramas litúrgicos incluem senão um punhado inexpressivo de melodias originais. Na maior parte, as breves intervenções musicais são contrafacta do gregoriano ou de cantos populares (dez CDs).

Da Itália, apenas o “Laudário de Cartona”, com 46 textos musicados, e o “Manuscrito de Florença”, com um laudário e algumas canções, sobrevivem do que possa ter existido até fins do século 13 (cinco CDs).

Martín Códax (c.1230): Cantigas de Amigo

Ensemble Triphonia

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Créditos de imagem: abrancoalmeida.com, uol.com.brgallimard.fr

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