Em Destaques, Música

Seria uma tarefa relativamente simples a de selecionar lista dos grandes capítulos da música coral do Ocidente. Em ordem cronológica começaríamos com um capítulo dedicado ao Canto Gregoriano, que seria seguido pela coletânea dos madrigais e dramas de Monteverdi. Em sequência viriam as Cantatas de Bach e os Oratórios de Haendel. Depois as missas e oratórios de Haydn e as óperas de Mozart e para finalizar o conjunto de óperas de Wagner. É óbvio que a lista acima pode ser aumentada e que alguns tesouros foram deixados de lado. Mas, poucos removeriam qualquer um dos capítulos mencionados para incluir outro item. Uma empreitada muito mais difícil, talvez impossível, seria a de hierarquizar esses grupos de obras. Certamente não encontraríamos um único crítico musical que concordasse integralmente com uma ordenação arbitrária qualquer dos sete capítulos da música vocal mencionados acima. Se, entretanto, recorrêssemos ao gosto popular e adotássemos como índice de aprovação a edição de discos, o primeiro lugar seria decidido entre as óperas de Mozart e as de Wagner. Em seguida estariam as missas de Haydn e os madrigais de Monteverdi. O último lugar da lista seria disputado pelos Oratórios de Haendel, Cantatas de Bach e Cantos Gregorianos. Por volta de 1935 Ernest Newman* cantou uma frase muito elegante, mas que provou estar equivocada. Cito de memória: “Enquanto Bach é o músico dos músicos, Haendel é o músico dos amantes da música”. Mas hoje existem, em catálogo, apenas nove dos trinta e dois Oratórios de Haendel e cinco de suas cinquenta e uma Óperas. Enquanto 75% das duzentas e vinte Cantatas de Bach são encontráveis facilmente e muitas em várias versões. E, embora nesses últimos vinte anos, pelo menos vinte e três dos trinta e dois Oratórios tenham sido oferecidos ao público, muito frequentemente, as interpretações foram insatisfatórias. Esses números revelam que mesmo no conceito popular, atualmente Bach ultrapassa Haendel.

A evidência dos fatos sugere que Newman estava equivocado. Entretanto a História da Arte mostra que os verdadeiros grandes têm que ser redescobertos a cada época. Bach e Haendel são grandes porque para cada tempo têm algo específico a oferecer e porque eles se renovam em cada geração. E houve períodos, nesses últimos duzentos e cinquenta anos, em que um ou outro foi abandonado pela preferência popular. Todavia, essa redescoberta a cada época depende da sensibilidade e da perspicácia dos necessários intermédios, os intérpretes, cujas concepções musicais nem sempre evoluem de acordo com o gosto popular, esse monstro desconhecido e imprevisível.

Sem nenhuma pretensão musicológica creio ser possível classificar os oratórios de Haendel em três categorias. Na primeira eu colocaria os grandes temas extraídos do Velho Testamento, fossem ou não oratórios dramáticos. Solomon, Saul, Israel no Egito, O Messias, Baltazar, Jephtha, Judas Macabeus. Teodora é caso aparte pois usa um tema cristão. A segunda série seria composta por obras de inspiração épica profana como Hércules, A Escolha de Hércules, Semele, Alceste, O Triunfo do Tempo e da Verdade, Alexander Balus etc. E enfim teríamos um conjunto de oratórios cantatas de contornos bucólicos como Acis e Galatea, Esther, A Festa de Alexander, L’Allegro, il Penseroso ed il Moderato e outros que refletem a influência italiana.

Existem hoje alguns projetos sérios. Harnoncourt e seu Concentus Musicus já gravaram Baltazar, Jephtha, A Festa de Alexander e O Messias, com resultados duvidosos, apesar da evidente e constante preocupação escolástica. O excesso de profissionalismo pode, às vezes, constituir obstáculo à expressão artística e Harnoncourt é o melhor exemplo de que se dispõe hoje de um intérprete que faz tudo certo e consegue aborrecer. Na mesma linha fica Somary e sua competente Orquestra de Câmera Inglesa.

Bem mais expressivo é Helmut Koch com sua excelente Orquestra de Câmera de Berlim, que já nos deu um bom Jephtha e um atraente Messias, mas estou convencido de que será mesmo da Inglaterra que virá a redescoberta da música coral de Haendel. O grande esforço de Scherchen e seus seguidores, principalmente Richter, apenas medianamente bem-sucedido para a época, resultou em um impasse estilístico. Serviu para ajudar a demolir a paquidérmica concepção vitoriana que prevaleceu até o começo dos nãos 60. Com Richter o leitor ainda encontrará o Sansão e O Messias. Nessa mesma linha, ainda indecisa e um pouco incongruente, em transição entre a grandiloquência do século passado e o revisionismo puritano desses últimos tempos, destacam-se as gravações de Mackerras com a Orquestra de Câmera Inglesa de Judas Macabeus, d’O Messias e de Israel no Egito, razoavelmente bem compostas. Menos bem-sucedidas as tentativas de Gardiner com a English Baroque Soloists, Acis e Galatea, L’Allegro, il Penseroso ed il Moderato e O Messias.

O que melhor se gravou de Haendel nesses últimos anos, entretanto é legitimamente inglês. Philip Ledger é quase excelente em sua interpretação d’O Messias e soberbo no Saul. Raymond Leppard, austero, é, não obstante, quase tão sedutor quanto Ledger. Ambos usam a Orquestra de Câmera Inglesa. Na mesma categoria coloco Stephen Simon que gravou Solomon e Ariodante com o Coro Jeunesse de Viena e Orquestra da Ópera Popular de Viena, mas que, não obstante, mantém esse novo estilo haendeliano inglês. A Ressurreição como também O Messias foram gravados por Hogwood e a Academia de Música Antiga, um dos mais bem- sucedidos eventos dos últimos tempos no campo da música vocal de Haendel.

*Ernest Newman, op. cit.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 02/10/1983.

Georg Friedrich Haendel

King’s College Cambridge 2008 #5 Angels From The Realms of Glory

Arr. Philip Ledger

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