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Ravel foi, como Beethoven, um solteirão inveterado. Mas esse último, apesar do celibato, foi um amoroso obstinado e platônico. Ainda recentemente ficou finalmente estabelecido que a famosa Bem-amada Distante não era outra senão aquela mesma Bettina que também andou provocando inquietações em Goethe. Schubert, outro solteirão, não deixou de ter seus amores, contrariados. E até Brahms, silenciosamente Clara Wieck, a dedicada esposa de Schumann, não passou em brancas nuvens. Afinal, sem uma ou outra paixão de que pode valer a vida para um artista? Mas Ravel é um permanente enigma. Não há nada em toda sua vida que indique relação amorosa, por passageira que fosse. Gostava de crianças, brinquedos e bibelôs. Somente um solteirão convicto teria tanto desvelo com o detalhe.

Por um desses enigmas, Ravel tem sido colocado sempre ao lado de Debussy. Mas são duas concepções musicais quase tão antagônicas quanto aquelas de Bach e Haendel. Debussy é um inovador, Ravel um renovador. Isso vale tanto para a estrutura formal, como para o ritmo, ou ainda para a harmonia. Se a música para piano de Debussy parte de Chopin, a de Ravel vem de Liszt. Se a concepção global de Debussy deve algo a Mussorgsky, a de Ravel deve à de Rimsky-Korsakov. Se aquele é Impressionista, esse é Neoclássico. Se Debussy foi exuberante em sua vida privada, Ravel foi asceta. E politicamente, enquanto ambos foram ardentes nacionalistas, Debussy era progressista e Ravel conservador. Isso não quer dizer que Ravel não tenha tido imaginação ou inspiração. Sua música é rica de descobertas harmônicas, de melodias exóticas e de variações rítmicas inesperadas. Porém, contrariamente a Debussy, jamais rompendo com as regras estabelecidas na época em que Debussy corrompia o estilo narrativo, Schoenberg desmontava o tonalismo e Stravinsky explodia com seus ritmos abruptos. O notável é que tenha conseguido tanta juventude em sua música. Claro, dominava seu métier. Poucos conheceram tão bem os meios usados em música.

Escreveu, infelizmente, muito pouco. Sua música para piano cabe em dois discos. Para orquestra, em quatro, as canções e a música camerística em dois. Ou seja, empata com Berg, e, mais parcimonioso que ele, foi apenas Webern, nesse século de usura artística. Perlemuter é hoje o grande intérprete de Ravel ao piano. Clareza e dinâmica transparente caracterizam seu estilo. Outros que gravaram a obra completa raveliana e que são mais que simplesmente recomendáveis, são o debussyano Gieseking, o exuberante François, o sentimental Entremont, o sóbrio Haas e o sutil Février. Cortot e Long também são aconselháveis. Satisfatórios, Collard, Beroff, Argerich e Pogorelich.

Ninguém afirmaria que a Guerra de 14 representou uma ruptura na evolução artística européia. Ravel é um exemplo interessante, pois viveu até 1937 e estava na maturidade quando começou o conflito. É verdade que teve problemas neurológicos sérios durante os seus cinco últimos anos de vida. Todavia, nada indica que durante a década de 20 tivesse problemas de ordem física. Mas há uma queda de qualidade em sua música do pós-guerra, embora, como obcecado artesão, tenha ele encontrado meios sutis para contornar a falta de inspiração. Dessa deficiência teve consciência completa, como revela sua correspondência com Stravinsky. Os dois Concertos para piano escritos em 31 são exemplos claros dessa habilidade de Ravel para encontrar sucedâneos para a inventividade musical. A adoção de um ritmo abrupto e a opção por um estilo melódico sincopado, emprestados do jazz, embora tratado superficialmente, associados ainda a sua usual maestria no uso da orquestração, servem ao objetivo imediato de manter a atenção de um púbico menos exigente. Marguerite Long foi a grande intérprete do Concerto em Sol Maior, desde a sua première. Cortot é o intérprete histórico daquele denominado para mão esquerda. Dentre as gravações, se destacam as de Perlemuter, François, Ciccolini, Queffélec, Monique Haas e Argerich.

Fenômeno ainda mais incompreensível é aquele referente à popularidade do Bolero, extravagante esforço virtuosístico e destituído de invenção. Somente A Valsa, esse irônico comentário sobre a decadência artística da época, terminado em 1920, pode ser considerada como uma pequena obra-prima desse tempo de pós-guerra. Faço também uma exceção para essa enigmática Sonata para violino e violoncelo escrita entre 20 e 22. Assim, os grandes sucessos anteriores a 1914, tais como Daphnis, como as Valsas Nobres e Sentimentais, como a Rapsódia Espanhola, o Gaspard, as Canções Históricas Naturais, a pequena opera buffa, intitulada A Hora Espanhola, e essa preciosidade de elegância que é Mamãe Ganso, não seriam igualadas. E mesmo o grande esforço de Ravel representado por L’Enfant et les Sortilèges é, em grande parte, insatisfatório. Seu sucesso resulta um pouco de uma revisitação do Ravel de antes da guerra. É notável o fato de que a satisfação estética experimentada por ocasião de uma audição dessas peças compostas a partir de 1914 depende do virtuosismo e dos intérpretes que a tocam.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica.  São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 13/10/1985.

Maurice Ravel
Ma Mère l’Oye (Mother Goose/Mamãe Ganso)
 Radio Filharmonisch Orkest
Regente: Edward Gardner
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Imagem: jjotademoraes.com.br

 

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