Em Destaques, Música

O homem comum apresenta como acontece com os animais, uma evolução em direção ao conservadorismo. O jovem é inovador, antes de amadurecer. É nesse período que ele é ousado, revolucionário. Mas o homem de gênio percorre esse caminho na contramão. A juventude é um período de acumulação de conhecimento, de consolidação de métodos e é na maturidade que ele inova, quando já detém informações suficientes para progredir. Quem é o revolucionário? O Picasso da fase azul ou o Picasso Cubista? Entre os grandes antropoides (o chimpanzé, o gorila) é a fêmea que mantém a capacidade de inovar após a maturidade. Os machos adultos são incapazes de aprender, dizem os especialistas. Nesse caso, a natureza selecionou um dos dois sexos para a promoção do pregresso. Com o homo sapiens a estratégia foi outra, a natureza preferiu estender para ambos os sexos a juventude. Esse fenômeno é denominado neotínea. Nenhum mamífero, além do homem, foi sob esse aspecto, tão bem aquinhoado. Basta comparar o percentual do período de vida que o rebento permanece sob a proteção dos pais, ou o que leva para alcançar um desenvolvimento físico pleno com aqueles de outros animais. Esse privilégio que tem o homem para manter-se adolescente por um período de tempo tão prolongado e, portanto, com a extensão da capacidade para aprender, é o principal responsável pela sua supremacia sobre os demais animais.

Nós humanos somos melhores porque somos jovens por um período mais prolongado. E os gênios são gênios, porque foram privilegiados pela natureza por uma extensiva adolescência. E, de fato, a música fornece um exemplo magnífico desse fenômeno. Beethoven foi um conservador até os trinta anos, um inovador até os quarenta e cinco anos e um revolucionário daí em diante. Schubert escreveu suas obras mais ousadas em seus dois ou três últimos anos de vida e Mozart teve suas mais imaginativas criações em seus últimos cinco anos de vida. Às vezes temos a impressão de que esses períodos finais representam a maturidade. Mas então é bom deixar claro que esse conceito de maturidade inclui uma grande dose de agressividade e de insatisfação com as práticas tradicionais. Bach é um outro exemplo desse padrão evolutivo.

Foi no fim de sua carreira que Bach escreveu o Segundo Livro d’O Cravo Bem Temperado, A Arte da Fuga, a Paixão Segundo São Mateus, A Oferenda Musical e a maior parte da Missa em Si Menor. O mesmo acontece com Haendel. E se o leitor examinar com cuidado a obra dos demais compositores verá que esse fenômenos é generalizado.

E agora um último exemplo com o qual mato dois coelhos com uma só cajadada. Além de ilustrar adequadamente a tese em pauta, serve como resposta a um leitor que se mostrou muito aflito com a minha preferência pelas Sinfonias de Haydn do período Sturm um Drang, em relação àquelas denominadas Salomon ou Londres. E, de fato, tenho um enorme afeto pelas sinfonias escritas quando o autor estava entre trinta e quarenta e cinco anos. Embora reconheça a importância histórica das últimas Sinfonias e de suas últimas seis Missas, continuo preferindo a música do período intermediário de Haydn. Mas é bom não esquecer que esse também foi um momento de grande inventividade em sua música. As mudanças eram suaves, mas contínuas. Haydn foi um revolucionário sereno. Afinal, foi essa a época que fixou as bases do mais revolucionário acontecimento da História da Música moderna, o estilo narrativo-dialético da forma sonata. É claro que esse evento também é perceptível na sequência de seus Quartetos. Todavia, as Sinfonias fornecem uma ilustração mais transparente, mais didática.

A comparação entre o Haydn de Londres e o Haydn de Esterháza é, não obstante, um exemplo magnífico. Não resta dúvida de que há muito mais inovação, tanto no que diz respeito à harmonia quanto à dinâmica, nas Sinfonias de Haydn sexagenário do que naquela do biologicamente jovem de trinta ou quarenta anos. E temos que reconhecer esse fato apesar de preferirmos a Sinfonia da Paixão à Oxford, a Sinfonia Fúnebre àquela do Rolar dos Tambores ou a Missa de São Nicolau à Harmoniemesse. Mas já que estamos falando de Haydn, informo ao leitor que poderá encontrar em São Paulo, em discos Hungaroton, o ciclo completo dos Quartetos de Haydn com o Tátrai. É uma interpretação antológica e representa uma aventura intelectual sem par.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Texto publicado originalmente em 11/12/1988.

Joseph Haydn

String Quartet Op 51 The 7 last Words

Tatrai Quartet

play

https://youtu.be/SLuN8_J-iJg


Créditos de imagem: fc00.deviantart.net

 

Facebooktwitter