Em Destaques, Música

Em uma série de artigos recentes discuti as principais vertentes da música Medieval, o Canto Gregoriano e seus precursores, as peças litúrgicas dos séculos XI e XII, as canções profanas dos Troubadours, Trouvères e Minnesänger. A música do século XIV, a Ars Nova com de Vitry e de Machaut, também foi considerada*.

Assim, para encerrar esse capítulo dedicado à música Medieval**, faltam apenas alguns títulos. A Ars Antiqua, ou mais precisamente a Escola de Notre Dame e alguns desenvolvimentos paralelos, a monodia de inspiração religiosa e alguns fenômenos isolados como a polifonia inglesa, o laudario italiano, e algumas manifestações pré-Renacentistas na Itália.

Para entender a Ars Antiqua, entretanto, fui obrigado a recorrer às minhas reminiscências sobre a arquitetura Gótica francesa que andei namorando em começos da década de 60. Basta lembrar que as construções das catedrais de Chartres e de Notre Dame de Paris são contemporâneas da Escola de Notre Dame, que formalizou a rejeição formal da monodia nos séculos XII e XIII. Estou convencido de que o mesmo princípio estético, a mesma liberação filosófica que presidiu o triunfo do Gótico arquitetônico sobre o Romano está presente no perene conflito entre a monodia e a polifonia.

É verdade ainda que René Huyghe encontra nas artes plásticas uma alternância entre períodos Barrocos, expansivos e inovadores, e outros de sobriedade, que coincidem, em certa medida, com as oscilações entre polifonia e homofonia, registradas na História da Música ocidental. Na esperança de entender os mecanismos elementares que fundamentaram esse fenômeno recorri a Etienne Gilson e seu Espírito da Idade Média. E o que percebo como dicotomia fundamental no pensamento da Idade Média é aquele existente entre o contingente e o necessário.

O necessário é o tenor, a melodia fundamental. O duplum e o triplum são contingentes. O trope, o organum e posteriormente o moteto são derivações fundamentalmente supérfluas. Não é, portanto, sem razão que discantus e conductus foram considerados aberrações, corruptelas contingenciais, do que era absolutamente necessário, a monodia. A melodia é, pois, no pensamento Medieval a única necessidade e a harmonia apenas uma contingência. É com essa visão que entenderemos no que segue a Escola de Notre Dame e outras manifestações polifônicas dos séculos XI, XII e XIII.

Até começos do século XI a monodia foi praticamente absoluta. Os cânones rígidos da Igreja impunham uma disciplina inquebrantável à inspiração musical. Mas aos poucos, como consequência de maior liberdade eclesiástica, algumas experiências ocorreram. Externamente à Igreja, o surgimento de um estilo erudito de canção, aquela representada pelos Troubadours e, internamente, as inovações mais bem caracterizadas pela Escola de Notre Dame. É preciso lembrar que existem evidências de que a música popular dos séculos X e XI, condenada pela Igreja, incluiria algumas formas de polifonia rudimentar. E como consequência algumas tentativas de incorporação desses recursos teriam ocorrido antes da instituição da Escola de Notre Dame.

As formas originais da polifonia que caracterizaram o período posteriormente denominada Ars Antiqua, por oposição a Ars Nova de Vitry e de Machaut, são o organum, conductus, a cantilena e o moteto primitivo. Dessas, as duas primeiras estão especialmente relacionadas com a chamada Escola de Notre Dame, dominada pelos dois grandes nomes da época, Leoninus e Perotinus.

O organum de Leoninus (em épocas anteriores chamou-se organum qualquer música polifônica) parece consequência direta do responsório em que o coro responde ao solista simultaneamente. Ao tenor, extraído diretamente do Canto Gregoriano, é adicionada uma segunda voz geralmente de caráter melismático, o duplum. Eventualmente o tenor segue os ritmos elaborados da voz superior (discantus). Posteriormente, com Perotinus, os organa em três e quatro vozes são caracterizados por movimentos rítmicos das vozes superiores mantendo-se rígido o tenor Gregoriano.

O conductus é uma canção que acompanha uma ação física, podendo ser monódica e polifônica. Está relacionado com uma procissão ou simplesmente com o deslocamento de executantes da missa. É o domínio do discantus (voz superior) em ponto-contraponto. As vozes movem-se em ritmo e melodia simultaneamente. A voz principal (mais grave) não é, como no organum, extraída do Gregoriano, mas composta especialmente e, portanto, com maior liberdade.

O melhor exemplo de Ars Antiqua é fornecido pela coletânea com esse mesmo nome do Capella Antiqua sob Ruhland, absolutamente imprescindível. Em oito discos a coleção didática intitulada Música da Idade Média, dirigida por Saville Clark inclui exemplos expressivos da Ars Antiqua tendo como principal atração a genialidade de Russel Oberlin. Igualmente compensadora é a coletânea História da Música Europeia, cujo primeiro capítulo em três discos, sob a direção de Denis Stevens, é em grande parte dedicado à Escola de Notre Dame. Outros intérpretes da Ars Antiqua que merecem consideração são o Pro Música Antiqua, o Consort de Música Antiga de Londres e o Deller Consort, que ocasionalmente incluem peças do período de Notre Dame em discos dedicados à música da Idade Média.

*O autor refere-se ao conjunto de artigos sobre Idade Média, por ele publicado não em ordem histórico-cronológica, conforme a organização desse livro.

**Ver artigos: “A Permanência do Canto Gregoriano” – 09/12/1984 “Música profana no cancioneiro da Idade Média” – 23/12/1984 “O maior entre os compositores da Idade Média” – 02/12/1984

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 30/12/1984.

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Capella Antiqua

Munchen Konrad Ruhland

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Imagem: teresaperez.com.br

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