Em Destaques, Música

Não me lembro bem qual o musicólogo que afirmou que cada geração encontrará uma diferente concepção para a ópera. E de nada adiantaria procurar uma definição precisa e imutável para esse fenômeno musical. Todavia, essa percepção, mesmo que fosse correta, não nos autorizaria a abdicar de um esforço para compreender, mesmo que provisoriamente, a natureza singular dessa fórmula imperecível. Os musicólogos dessa última geração nos induziram a relacionar as origens da ópera a um esforço de um grupo de intelectuais florentinos autodenominado Camerata que em um esforço de racionalidade proclamaram a primazia do drama sobre a música. Isso ocorreu por volta de 1580, e integra o movimento humanista que procurava fazer renascer o drama grego. E, de fato, a influência dessa concepção, a música como simples reforço para a expressão literária, dominou a ópera nos tempos que se seguiram até que a correlação volta a se reverter chegando ao pináculo da decadência com a sedutora ópera de Alessandro Scarlatti. Todavia, Gluck viria a colocar a ópera nos trilhos novamente. Eu diria que a história da ópera é uma recorrência de bruscos corretivos racionalizantes em que se procura recompor a supremacia da palavra sobre o som, e de prolongados períodos de relaxante e atraente decadência, alternadamente. E mais ainda, que a Camerata não representa senão uma dessas intervenções intelectuais, que pela sua violenta interferência quase acaba por apagar a memória da vida passada da ópera.

Há outras dessas teorias altamente dogmáticas que atribui o nascimento da ópera a uma iniciativa da Igreja Católica durante a média Idade Média, com a finalidade de competir com espetáculos profanos que alcançavam nos séculos XI e XII grande popularidade, subtraindo os crentes das práticas religiosas. Assim, para atraí-los de volta à Igreja, deliberadamente permitiram os clérigos uma forma híbrida, derivada da introdução de práticas musicais populares com estruturas Gregorianas.

Dessa fertilização mútua nasceu uma forma de drama musical que só se distingue da ópera Renascentista pelos elementos literários e técnicas musicais disponíveis a cada uma dessas duas épocas. Se eram chamadas de milagres, essas óperas primitivas, foi por causa do seu conteúdo literário imposto pela Igreja. Todavia, a dominância de elementos musicais folclóricos, extra litúrgicos, distancia essas peças de oratórios e outras formas sacras da época e de períodos históricos consecutivos. Mas creio que podemos ir ainda mais longe. A colaboração entre música e drama nasceu com a própria música. E a maior indicação que temos desse fato é que não há cultura atual, no Ocidente ou no Oriente, que tenha desenvolvido qualquer forma de representação dramática e que não tenha combinado música com drama. Tenho mesmo a impressão que em qualquer que seja a cultura o drama nasceu pela mão da música, liberando-se posteriormente por vezes e instituindo o teatro. A concepção do pessoal da Camerata, ou a de Gluck, se levadas ao extremo, fariam degenerar a ópera em forma qualquer de teatro. E é por isso que Mozart será sempre o pináculo do gênero, pois tinha o dom do equilíbrio, da proporção ótima entre palavra e som.

Se o leitor quiser alguns exemplos concretos poderá adquirir algumas óperas de alguns desses compositores que melhor representam a filosofia da Camerata. Magníficas versões das óperas Xerxes e Giasone, pelo Concerto Vocale sob René Jacobs, foram recentemente lançadas. E também pelo mesmo impecável grupo de artistas foi editado em 82 a ópera Orontea, de Cesti. Essas obras ilustram melhor o rigor do estilo representativo do que as óperas de Monteverdi, pelo menos do que aquelas que chegaram até a nossa época. Para ilustrar o extremo oposto, a decadência, proponho a recém-editada ópera de Alessandro Scarlatti, Giuditta com o Capella Savaria sob McGegan. E é bom notar que enquanto a revolução da Camerata se faria contra os excessos da polifonia do século XVI, cem anos depois é a melodia que derrota o estilo representativo. É claro que qualquer ópera de Vivaldi, ou mesmo Haendel, serviria a esse propósito, mas seria uma pena perder essa desculpa para adquirir um disco tão atraente quanto essa ópera de Scarlatti, que além do mais é encontrado no Brasil em disco Hungaroton. Aliás, é também dessa marca que o leitor encontrará no Brasil dois dos milagres mais conhecidos, o de Daniel e o de São Lucas, ambos com a competente Escola Hungárica.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica.  São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p.

Cavalli Giasone Part 1 – Jacobs Innsbruck 1988

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www.youtube.com/watch?v=9cnjTi152jI

Cavalli Giasone Part 2 – Jacobs Innsbruck 1988

playwww.youtube.com/watch?v=yizeBQyrGJQ


Créditos de imagem: resmusica.com

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