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Quem já não ouviu em algum lugar afirmativas como “Beethoven nunca inovou, Haydn era conservador, Mozart apenas seguiu os ditames da “Escola de Mannheim”” e assim por diante? Seria isso possível?

Às vezes tenho a impressão que uma obra inovadora nunca envelhece. Se foi inovadora no século XVII, permanecerá inovadora na atualidade. Não há muita lógica no que estou dizendo, eu sei, mas estamos falando de música, não de ciência. Quem não reconhece a impostura na Sinfonia Clássica de Prokofiev ou no Concerto Adelaide para violino e orquestra, fraudulentamente atribuído a Mozart, apesar do inegável talento de seus autores e do cuidado com detalhes de estilo?

O homem ama o novo, apenas o novo”, dizia Goethe. Mas o novo é imperecível. E esse é o grande paradoxo da arte. E se o homem tem um sexto sentido, é na percepção da eternidade da inovação. Pois, como sugere Goethe, não é a missão do homem civilizado “eternizar o transitório”?

Há muitos musicólogos que, para contornar a impossibilidade de distinguir objetivamente, com base em elementos de estilo, os espúrios concertos para violino atribuídos a Mozart dos autênticos, afirmam que incluíram os falsos alguns fragmentos de música de Mozart. Pura balela. Assim como o Adelaide, os KV 268 em Mi Bemol Maior e KV 271 são nitidamente apócrifos.

Mozart escreveu cinco Concertos para violino antes de qualquer de seus verdadeiros Concertos para piano, além de seus primeiros quatro, nitidamente juvenis e decididamente pastichos de músicas emprestadas de outros compositores pelo menino de onze anos. O KV 175 composto quando tinha Mozart dezessete anos é obviamente um ensaio. Os cinco Concertos para violino de Mozart foram escritos em um único ano, 1775, quando o compositor tinha dezenove anos, e constituem um testemunho incomparável da absurdamente dinâmica evolução que ocorria com Mozart quando enfrentava uma nova forma musical. Se os KV 207 e 211 ainda são hesitantes arremedos, embora cativantes, de fórmulas Barrocas (ou deveríamos dizer, Rococó), os três seguintes, KV 216, 218 e 219, são exemplos maduros do concerto moderno, e aquele em Lá Maior uma indiscutível obra-prima.

Fora de duas outras peças avulsas, possíveis alternativas para movimentos de alguns de seus cinco Concertos anteriormente compostos, Mozart nunca mais compôs obras nesse gênero. Talvez porque tivesse feito uma opção definitiva pelo piano como instrumento pessoal. Tanto seus cinco concertos para violino como os vinte e seis para piano foram concebidos para seu uso próprio, à exceção talvez dos KV 438 e KV 246 para piano.

Em nenhum outro capítulo da música fica tão evidente a génese da inovação como nessa breve e genial sequência de obras que é a série dos Concertos autênticos de Mozart para violino e orquestra. Também é um exemplo magistral do procedimento adotado por Mozart para elaborar uma nova forma musical. A despeito dos esforços de C. Ph. Emanuel Bach e de Haydn, que se desenvolveram em paralelo, podemos dizer que Mozart, com essa sucessão de cinco Concertos, inventava o concerto moderno. E é essa condição que empresta tanta vida a essas enfeitiçadas pequenas obras-primas.

Se o leitor quiser sentir essa sensação de descoberta, que encomende a coleção com Josef Suk como solista e a Orquestra de Câmera de Praga dirigida por Hlavá

ek em disco. A alternativa possível em CD são as gravações de Uto Ughi com a Santa Cecília. Perlman e Grumiaux, embora razoáveis, são nitidamente inferiores. Mas talvez valha a pena esperar, pela integral com Schröder e Conjunto Mozart de Amsterdã, sob Brüggen.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 06/03/1988

Wolfgang Amadeus Mozart
Adagio in E Major, KV 261
Uto Ughi, violin
Orchestra da Camera di Santa Cecilia

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https://www.youtube.com/watch?v=tx7FdtIrxL0

Imagem: commons.wikimedia.org

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