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A Flauta Mágica cujo epíteto, ópera maçônica, discutido nessa coluna na semana passada*, foi escrita em 1791, mesmo ano, aliás, em que Haydn sofria em Londres aquela que seria, talvez, a mais dramática experiência musical de sua vida, a audição d’O Messias de Haendel, de acordo com a mais espetacular tradição coral inglesa. Todavia, em 1795 as coisas haviam mudado em Viena e muito. O novo imperador, Franz, havia banido a maçonaria e, é preciso não esquecer, também, Haydn como Mozart e Goethe, era maçom.
Imediatamente após o imenso impacto que teve a audição d’O Messias sobre seu pensamento musical, Haydn recebeu das mãos de um tal Lidley, mais um desses personagens misteriosos que habitavam o mundo intelectual da época, um texto extraído e adaptado da obra clássica de Milton, O Paraíso Perdido. Além do mais, não foram poucos os que, durante essa prolongada visita a Londres não o instaram a emular Haendel, compondo um oratório de acordo com as tradições britânicas. A impressão deixada por aquele festival na Abadia de Londres, em que participou pelo menos uma centena de vozes e instrumentalistas, foi enorme. E não há razões para duvidar do veredito histórico de acordo com o qual teria Haydn enunciado de joelhos a respeito de Haendel: “Ele é o mestre de todos nós”. Muitos são os testemunhos que, se não corroboram essas exatas palavras, confirmam a impressão e a admiração de Haydn por tudo o que pôde ele ouvir de Haendel, durante esse histórico festival.
“O que não pode ser dito pode ser cantado”, afirma Figaro, personagem da opera buffa Clássica de Mozart. Não resta dúvida que uma mensagem de natureza fraternal, bem ao gosto maçônico da época, pode ser detectada na obra-prima coral de Haydn. A perspicaz e sensível tradução, adaptação elaborada pelo barão van Swieten do texto original de Lidley, tem um claro sentido humanístico e, embora não haja testemunho do autor sobre o assunto, a obra se utiliza de harmonia muito semelhante àquela considerada à época pertinente ao ritual maçônico.
Teria assim Haydn, o mais bem-comportado de todos os gênios da música, buscado na música a cobertura para um testemunho ideológico em acordo com o princípio enunciado pelo personagem Figaro da ópera de seu discípulo, contemporâneo e amigo dileto, Mozart. Aliás, dispositivo frequentemente usado pelos artistas modernos para expor suas críticas sócio-políticas. É verdade que desde os baladeiros subversivos dos anos 40 nos EUA, como Cisco Houston, Pete Seeger, Woody Guthrie e, mais tarde, Joan Baez, até os nossos Caetano Veloso e Chico Buarque de Holanda, ficou claro que essa condição já não prevalece. E até mesmo obras inteiramente instrumentais foram proibidas em nosso século, como Finlândia de Sibelius, durante os anos negros do fascismo. E ainda hoje o pensamento oficial da União Soviética condena as manifestações da Segunda Escola de Viena pela sua natureza burguesa.
Seja por uma razão ou outra, pela simples admiração da arte magistral de Haendel, pelo impulso de manifestação pessoal sobre a fraternidade universal ou ainda pela fidelidade a utopia ingênua de uma fraternidade já em decadência, o fato é que Haydn, já com sessenta e cinco anos de idade, consegue reformar seu estilo vocal e dar a volta por cima, conseguindo o maior sucesso de toda sua extensa carreira pública. Uma obra-prima como poucas na História da Música ocidental.
Obra feliz, pois desde sua concepção até hoje continua sendo preferida do público. Mesmo em discos tem sido muito bem representada. Desde a antológica interpretação de Clemens Krauss, de 1943, com a Filarmônica de Viena e um trio de vozes que possivelmente nunca será superado: Eipperle, Patzak e Hann. A versão mais prestigiada pelos comentaristas é aquela de 66, de Karajan com a Filarmônica de Viena e Singverein de Viena. Com exceção de Janowitz, os solistas são apenas excelentes. Janowitz está indescritível, na melhor forma de toda sua carreira. Juntamente ou muito próximo a essas duas versões antológicas situam-se as versões de Münchinger com o Coro da Ópera Estadual e Orquestra Filarmônica de Viena, e a de Dorati com o Coro do Festival de Brighton e a Filarmônica Real. Kuijken e sua Pequena Banda nos dão uma versão de bom gosto, mas sem a eloquência das anteriores. As versões de Forster com a Sinfônica de Berlim e a de Wand com a Gürzenich de Colônia deixam um pouco a desejar.
*Ver artigo: “Maçonaria e A Flauta Mágica de Mozart” – 06/07/1986
Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 13/07/1986.

Franz Joseph Haydn

The Creation

Vienna Philharmonic Orchestra

Clemens Krauss

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