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Não deixa de ser um paradoxo desconfortável o fato de que pelo menos 90% do renome de Stravinsky seja devido a uma parcela relativamente pequena e preliminar de sua vasta produção e, além do mais, restrita a um estilo que foi, em grande parte, rejeitado posteriormente pelo autor, ou pelo menos reduzido a expressão bem mais modesta.

Comecemos por uma contabilidade. Provavelmente um catálogo europeu de discos é mais representativo do que um americano. Esse último inclui marcas que se limitam ao público de um único país e exclui muito do que é representativo na Europa. Evitemos também a perturbação que constitui o lançamento dos discos compactos e suas oportunidades de negócios. Assim, tomemos como base o catálogo Diapason 81.

A Sagração da Primavera, inegavelmente a mais bem-sucedida obra de Stravinsky, de público e de crítica, apresentava a essa época vinte e quatro gravações distintas. A Pétrouchka em sua versão original, de 1911, era representada por onze interpretações e na versão de 47 por outras cinco. Além dessas, na versão para piano, estavam disponíveis sete versões. A terceira obra de Stravinsky de maior sucesso é certamente o ballet a suíte sinfônica denominado O Pássaro de Fogo, com sete gravações da versão de 1910, dez interpretações da versão de 1919 (suíte) e uma da versão de 45.

Essas três foram, em suas formas originais, compostas e apresentadas ao público entre 1909 e 1913, quando o autor estava em uma faixa de idade ainda tenra, entre vinte e sete e trinta e um anos. Antes, ele compusera algumas obras, mas não muito: a Sinfonia nº 1 em Mi Bemol Maior Op.1, um Scherzo Op. 3 e uma fantasia denominada Canto Fúnebre, todas certamente disponíveis, além de algumas Canções e uma Cantata (desaparecida).

Se fôssemos julgar o artista pelo que produzira até os vinte e sete anos, o classificaríamos como bastante medíocre. Nada permitiria prever o estupendo estardalhaço que iria causar no Teatro dos Campos Elísios, em Paris, a 29 de maio de 1913. Talvez o maior e mais significativo escândalo da História da Arte.

Essas três obras são responsáveis por 40% do total das gravações de obras de Stravinsky. Mas essa contabilidade não reflete a verdadeira preferência do público, pois poucos adquirem interpretações distintas da mesma obra, sendo possível que obras secundárias sejam adquiridas por indução. Uma estatística mais representativa seria realizada pela apresentação em concerto das obras do autor. E muito provavelmente essas três obras representariam mais que 90% das realizações.

Um segundo grupo de obras, imediatamente subsequentes – O Canto do Rouxinol, Pulcinella e O Beijo da Fada em versões sinfônicas e como música de ballet de certa maneira prosseguiram na mesma linha. E o limitado sucesso que alcançaram mostra que a mudança de estilo de Stravinsky talvez não tenha sido uma opção heroica, como gostamos de acreditar, mas uma imposição da natureza.

Isso não quer dizer que o que compôs o mestre russo em sua fase econômica, e mesmo em suas incursões atonais, não tenha um grande valor musical. Apenas aquele toque de excelsa genialidade nunca mais foi encontrado. Que maldição não será essa de ser perseguido, por toda uma vida, pelo fantasma de sua própria genialidade passada. Teria sido tão melhor, como ocorrera com seu contemporâneo Bartók e com os clássicos Bach, Haendel, Haydn, Mozart, Beethoven e Schubert, ver a própria genialidade crescer com o passar do tempo.

Para melhor entender essa questão, proponho que a comparação seja feita por intermédio de um novo e competente intérprete de Stravinsky, Ricardo Chailly. Que seja comparada sua gravação de A Sagração da Primavera com a Orquestra de Cleveland, de exuberante dinâmica, com o The Rake’s Progress, com a Sinfonieta de Londres, de formidável clareza instrumental.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 19/06/1988.

Igor Stravinsky (1882-1971)
Rite of Spring
Royal Concertgebow Orchestra
Ricardo Chailly
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