Em Destaques, Música

Do cipoal de teorias conflitantes, relativas à música eclesiástica ocidental durante o primeiro milênio da era cristã, apenas três conclusões incontornáveis emergem. Do 6º. ao 10º. século a memória do cantochão, que inicialmente se apoiava exclusivamente em transmissão oral (auricular, como preferem autores mais modernos), passa a ter amparo em uma notação (neumas) que, embora insuficiente para registrar adequadamente a música, servia como “aide-mémoire” para os executantes (cantores). Durante esse mesmo período os inúmeros cantos regionais, inclusive aqueles de proeminência extensa e duradoura, como o moçárabe, o galicanto, o ambrosiano, o antigo romano etc., foram praticamente erradicados e progressivamente substituídos por um único, o gregoriano, ou deste se aproximaram sensivelmente, mantendo apenas algumas diferenças quase imperceptíveis. O terceiro fenômeno ocorrido à mesma época foi a estabilização do próprio da missa, ou melhor, daquela parte que se refere e, portanto, varia com o evento celebrado. Essa tríplice observação, embora generalizada entre musicólogos especializados em música antiga, é especialmente sobrelevada por Kenneth Levy, talvez o mais eminente especialista da atualidade [ver, por exemplo, sua compilação de ensaios “Gregorian Chant and the Carolingians”, Princeton University Press, 1998, e seu mais recente artigo, “Gregorian Chant and the Carolingians”, em “Journal of the American Musicological Society”, 2003, vol. 56, nº 1, pág. 5, ou “A New Look at Old Roman Chant”, em “Early Music History”, 1, em vol. 19, pág. 81, e 2, em vol. 20, pág. 173].

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Estado laico

No que segue vamos argumentar que esses três aparentemente independentes acontecimentos, assim como a atraente hipótese avançada por Levy referente à existência no século 9º de um único sistema primordial de neumas, precursor de todos os inúmeros outros, implicam a existência de um propósito eminentemente político para a missa. E por política significamos não apenas aquela relativa aos interesses específicos da religião, mas antes de tudo aquela de âmbito do poder do Estado laico. É obvio que essa percepção é claramente antagônica às percepções de objetivos, meramente exegéticos ou hermenêuticos, da liturgia mais fecunda da igreja romana em seu primeiro milênio de existência (Flynn, W.T. “Medieval Music as Medieval Exegesis”, The Scare Crow Press Inc.).

Essa nossa conclusão será confirmada pela análise da acidentada, por vezes convulsiva, história da progressiva inclusão do credo no ordinário da missa, durante cinco séculos. Hoje percebemos a ingenuidade dos comentaristas que, a partir do 8º ou 9º séculos, até praticamente meados do século 20, atribuíam à atuação pessoal de Gregório 1º, o Grande (540-604), um súbito e universal congelamento de uma particular coleção de cerca de 630 textos e suas melodias, quando ainda não havia nem sequer uma notação mneumônica para a música. O que é possivelmente verdade é que são Gregório tenha escolhido 630 textos do próprio da missa da maneira que eram cantados em Roma, mas sem maior preocupação com a perenidade das respectivas melodias. Essa estabilização do próprio começa realmente a ocorrer e estará quase que completa no virar do século 7º para o 8º.

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Complexo e incoerente

Todavia essa ocorrência não veio por simples decisão do papado, mas antes por insistência do poder secular, ou seja, dos monarcas carolíngios. Mais especificamente, como adequadamente documentado, foi por insistência de Pepino, o Breve (714-768), e seu filho, Carlos Magno (742-814), que o grande passo para a supressão dos cantos regionais e sua substituição pelo canto gregoriano progrediu. E ingênuos também foram os comentaristas que atribuíram os esforços de Pepino e Carlos Magno para a estabilização da missa a propósitos espirituais. O império carolíngio era um complexo e incoerente conjunto de povos com diferentes línguas, dialetos, costumes. A única coisa que tinham em comum era a religião e esta se manifestava pelos seus rituais, dentre os quais o mais fecundo era a celebração da missa. E era certamente, durante essa cerimônia, a da “Eucaristia”, da comunhão entre os homens, sua igreja e Deus, sob a influência hipnótica do ritmo da música, que poderia ser aplicado o cimento para a construção de uma verdadeira comunidade, um império unido. É obvio que isso seria mais difícil se cada povoado, cada tribo, cantasse uma missa diferente. E, para que todos, na vasta extensão do império carolíngio, cantassem a mesma missa ou pelo menos a ouvissem, seria necessária uma notação. Há, portanto, também razões de ordem política, além daquelas de natureza técnica propostas por Levy, para a hipótese de um sistema de neumas arquetípico, do qual derivariam todos aqueles sistemas de neumas que surgiram nos séculos 10º. e 11º.. Sob esse aspecto, aliás, pouco diferem as iniciativas dos monarcas carolíngios daquela do nosso Villa-Lobos e de Getúlio Vargas, que reuniram 40 mil vozes no campo do Vasco da Gama. Se os meios formais utilizados para a estabilização do próprio deixam transparecer a intenção do uso da missa como instrumento político, aqueles que suportaram a fixação do ordinário, séculos depois, e que terminam com a inserção do credo no cerne da missa, tornam incontestável o papel dessa celebração como agente político. O credo tem uma natureza completamente diversa daquela dos demais componentes da missa. Originalmente era uma manifestação de lealdade, de obediência à igreja e a Deus. Note-se que é a única parte da missa que é expressa na primeira pessoa, por ser praticada, durante o batismo, possivelmente.

Conflito litúrgico

Essa qualidade colide com o caráter eminentemente eucarístico, congregacional da missa. É esse conflito litúrgico, senão metafísico, que justifica a resistência do papado em assimilar o credo como parte integrante da missa. O primeiro registro histórico eloquente dessa disputa se refere à insistência de Carlos Magno para a inserção do credo na missa e a concessão final expedida por Leão 3º, restrita, todavia, aos francos. Apenas 200 anos depois, novamente por pressão de um imperador católico, Henrique 2º, da Alemanha, juntamente com o papa Benedito 8º, vem o Credo finalmente ocupar a posição central que tem hoje na missa, o que com isso estabiliza definitivamente o ordinário da missa medieval.

Mas quais seriam as razões fundamentais para que o poder secular tão insistentemente promovesse esse “enxerto” tão insólito? O interesse por um conteúdo eucarístico uniforme da mais popular e frequente prática é facilmente compreensível como um instrumento para a criação de uma espécie de identidade para o mundo ocidental. Essa foi possivelmente a motivação para a atuação do Estado carolíngio. A estabilização do próprio, aliás, também servia à igreja, como organização política. Mas o que justificaria a perseverança do poder secular na inclusão do credo? A única explicação que nos ocorre é a conveniência para o Estado da manifestação de obediência, de submissão, de lealdade em relação à igreja, à essa época aliada incondicional do império carolíngio e de seus sucessores ottonianos.

Créditos de imagem: wikipedia.org, parable.compowells.com


Publicado no jornal Folha de São Paulo de 05 de outubro de 2003.

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