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Uma das permanentes polêmicas da musicologia do século XX se desenvolve em torno das origens do Canto Gregoriano. A cada decênio a teoria da procedência judia do Canto Gregoriano é abandonada para ser recuperada na década seguinte. A verdade é que, não apenas esse gênero musical não é tão homogêneo como parece à primeira vista, como também os próprios Cantos de Sinagoga evoluíram enormemente durante o prolongado período em que o Canto Gregoriano se consolidou. Todavia, não creio que possa haver dúvidas quanto às correlações entre a música das Sinagogas dos séculos IV ao VIII e os salmos e cânticos Gregorianos. Mas também é inquestionável que outras influências como a síria, a bizantina e a grega foram importantes. Durante séculos os prelados incorporaram e destilaram esses muitos estilos, costurando-os lentamente em um processo quase artesanal de eliminação do supérfluo e de burilamento permanente. Mas que não se enganem os neófitos, pois sob essa aparente homogeneidade há grande riqueza de formas e de nuances melódicas. O cerne da estética Gregoriana reside em sua retórica sintética, lacônica mesmo. Pois justamente o que diferencia o Gregoriano de outros estilos de cantochão, como o Ambrosiano ou o Romano Antigo por exemplo, é o caráter prolixo dos demais. O Canto Gregoriano é como um soneto de Camões, ou uma gravura de Dürer. Nenhuma redundância, nenhuma ambivalência, nenhuma omissão.

O milagre da constância e da universalidade do Canto Gregoriano, que é cantado até hoje quase como foi estabelecido em fins do século VIII, explica-se pela força de um documento oficial da Igreja que, com a intenção de eleger uma prece universal e perene, atribuiu a São Gregório, o Grande, a autoria desses cantos usados nessa época em Roma. Da mesma forma que as palavras santas não eram retocadas, também permaneceram inalteradas, tanto quanto possível, as melodias Gregorianas. Eis a explicação de sua inacreditável longevidade. A partir dessa época, o Canto Gregoriano passou a ser obrigatório e uniforme, apesar de alguns setores de resistência como foi o caso da diocese de Milão, que conseguiu manter o Canto Ambrosiano.

É verdade que a partir do século X, com a introdução de linhas na notação musical, algumas alterações viriam a ocorrer. E a Igreja impunha frequentemente reformas recuperadoras das tradições originais. Todavia, o imperativo da polifonia e de uma escrita muito mais eficiente veio derrotar definitivamente o verdadeiro estilo Gregoriano e, em meados do século XVI, Clemente VIII estabelecia oficialmente a modernização do canto litúrgico. A decadência se prolongou até meados do século XIX, quando Coussemaker conseguiu decifrar os neumas, a escrita Gregoriana primitiva, por analogia com os acentos gramaticais.

Incansável foi o trabalho dos monges de Solesmes durante a segunda metade do século passado, mas hoje podemos inebriar-nos com essa arte que alcançou seu apogeu no século VIII, há mil e duzentos anos e experimentarmos essa estranha sensação de estar em um mosteiro Medieval de maneira muito mais completa do que experimentaríamos com a leitura de cem romances de Umberto Eco.

São umas seiscentas peças originais que servem para o serviço da missa, para serem cantadas pelos coros, embora outras composições destinadas às congregações fossem intercaladas nos serviços litúrgicos. Além dessa coleção e de seus adendos, há outra de igual dimensão, mas de legitimidade canônica não assegurada, destinada às Horas do Serviço Divino, embora muito provavelmente datem essas composições fundamentalmente dos séculos IV, V e VI, tanto quanto aquelas destinadas à missa.

A própria Abadia de Solesmes nos oferece uma coleção incomparável em cinco discos, além de outros avulsos. Igualmente competentes soam os Coros Beneditinos de Varensell, de Maria Einsiedeln, de Montserrat e de Beuron, todos eles gravados para a Archiv em uma esplêndida coleção.

Se você, entretanto, aprecia sutilezas vocais, o Deller Consort é uma escolha plenamente justificável, apesar da perda de autenticidade. Para aqueles que gostariam de uma comparação com o estilo Ambrosiano, esse é magnificamente representado pelo Capella del Duomo di Milano, como não poderia deixar de ser. Outra coletânea atraente é a da Capela Papal de São Francisco de Assis, que inclui com alguma liberalidade esse magnífico Livro das Laudas de Cortona, embora eu continue preferindo para essa peça específica a magistral interpretação de Loehrer com a Sociedade Camerística de Lugano.

Merecem ainda menção os Coros Beneditinos de St. Maurice e St. Maur. Uma coletânea de grande beleza nos é oferecida em três discos pela Schola Cantorum de Amsterdã. E para as feministas, que se agravam com esses coros puramente masculinos, sugiro o Coro das Freiras de Notre Dame d’Argentan. Embora tradicionalmente freiras não pudessem participar do coro, há indícios de que eventualmente lhes era permitido compor a congregação.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 09/12/1984.

Canto Gregoriano Abadía de Notre-Dame de l’Annonciation

Monjas Benedictinas Salmo 59, 4, 6

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Imagem: dailyoffice.org

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