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O exame da cronologia das Cantatas de Bach provoca a mais desconfortável perplexidade. Foi em Mühlhausen que Bach escreveu suas primeiras Cantatas Sacras, inclusive a muito conhecida Christ lag in Todesbanden. Em um período de um ano, basicamente em 1708, escreveu seis Cantatas. Tinha então apenas vinte e três anos. Só voltou a escrever nesse gênero em 1714-15, quando em pouco mais de dois anos compôs pelo menos dezoito obras.

Todavia, foi apenas em 1723, após um período de oito anos sem uma composição que, já com trinta e oito anos, veio a se tornar o grande especialista no gênero. Em pouco mais que quarenta e oito meses, quatro anos, compôs cento e quarenta obras, conservadas até o presente. O que corresponde a quase um movimento por dia. Após esse paroxismo, escreveu, nos cinco ou seis anos seguintes, uma média de quatro Cantatas por ano; depois, até o fim de sua vida, menos que uma por ano.

Essa estatística é realizada sobre as obras remanescentes, mas tudo indica que aquelas que se perderam seguem aproximadamente a mesma distribuição. Também quanto à qualidade, embora essa seja uma avaliação muito pessoal, a distribuição é a mesma. Há encantadoras Cantatas do período de Weimar, e mesmo entre as prematuras há magníficos momentos. Para aqueles que procuram explicar a febril produção de Bach em seus primeiros anos em Leipzig pelo reaproveitamento de material próprio e alheio, é bom lembrar que essa prática, no que diz respeito às Cantatas, não atinge 5% do material composto entre 1723 e 1726.

Essa homogeneidade qualitativa combinada com a exuberante diversidade de meios torna muito complexa uma ordenação das Cantatas. E a classificação numérica baseada principalmente no texto literário torna ainda mais complexa a questão.
Além do mais, esse é talvez o mais extenso bloco de composições do mundo ocidental. Se tomarmos como elemento de comparação a duração, então as
Cantatas de Bach representam pelo menos o dobro das Sinfonias de Haydn, os Oratórios de Haendel ou as Óperas de Mozart. E sete vezes mais que as Sonatas para piano de Beethoven ou os Madrigais de Monteverdi.

Somente após quase vinte anos dois grupos instrumentais e vocais estão para terminar a gravação do ciclo completo de Cantatas que ocupara quase uma centena de discos compactos. Esse monumental empreendimento é antes de tudo uma proeza pela constância de estilo. Minha edição do volume primeiro com as primeiras cantatas, as nos 1 e 3 de 1725, ano culminante da arte específica do mestre de Leipzig, e a 2 de 1724, igualmente possante, pertencem todas à categoria de cantata coral, com ricos solos acompanhados por instrumenti obbligati, enfim tudo aquilo que delicia o fanático do Barroco. Essas três Cantatas contrastam com a nº 4 que, juntamente com a 118 e com a que teria sido nº 50, são cantatas em estilo moteto.

Instrumentistas, coros e solistas são os mesmos que reencontramos no volume 40, que contém as Cantatas nos 170 a 174. Todas de Leipzig, exceto a 172, que pertence ao período de Weimar e é uma cantata com coros, árias e rica instrumentação. Somente os meninos solistas e um ou outro instrumentalista mudaram. A duração de um menino-cantor é de quatro ou cinco anos, e várias gerações foram necessárias para a realização dessa série de Cantatas. Hoje ficamos impressionados com o fato de que seja possível terminar, embora em vinte anos, essa magnífica empreitada, mas esquecemos que foi composta, pelo menos três quartos dela, em apenas quatro anos.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 10/01/1988.

Johann Sebastian Bach

Christ lag in Todes Banden, BWV 4

English Baroque Soloists & Monteverdi Choir

Conducted by John Eliot Gardiner 

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