Em Destaques, Música

Por Rogério Cerqueira Leite

Talvez seja por causa de Pablo Casals que associo as Suítes para violoncelo solo de Johann Sebastian Bach à Espanha. Tenho mesmo a certeza de que se Cervantes tivesse que escolher um instrumento para seu solitário e melancólico herói, o Don Quixote, seria necessariamente o violoncelo e a música que ele tocaria seria aquela de Bach. Todo grande violoncelista é um corredor a distância, capaz de vencer a fadiga e a solidão a cada dia, indefinidamente, como Don Quixote.

Sim, é verdade que o violoncelo se integra, disciplinadamente, em um quarteto de cordas. Mas inconformadamente. Para compreender esse estado de espírito do singular instrumento é preciso familiarizar-se com as Suítes para violoncelo “solitário” de Bach, certamente o conjunto mais significativo de obras para esse instrumento. Somente nessas obras é capaz o violoncelo de realizar integralmente sua melancólica solidão. Todo violoncelista de qualidade, cedo ou tarde quer tentar a sorte com essas obras. E esse será o grande desafio de sua vida profissional porque é impossível evitar uma comparação com Pablo Casals. Nesses últimos dois ou três anos, todavia, alguns novos intérpretes gravaram afoitamente a série das Seis Suítes com resultados diversos. Mas antes de qualquer comentário sobre a interpretação dessas obras é preciso compreender sua finalidade, sua função, no interior do complexo coerente que é a obra de Bach, pois não restam dúvidas de que tudo se ajusta, tudo se completa mutuamente nesse corpo imenso de música e poesia.

É preciso lembrar que essas Seis Suítes foram escritas simultaneamente, com toda certeza, àquelas suas congêneres para violino, antes de 1720, em um período claramente preparatório, apesar da maturidade do compositor. É como se Bach elaborasse com as Suítes para violoncelo e Partitas e Sonatas para violino solo, um compêndio pessoal definitivo, em que estariam catalogadas as limitações à polifonia, inerentes a instrumentos de cordas e todos os possíveis artifícios capazes de gerar a impressão de contraponto em instrumentos melódicos claramente adversos.
E a sabedoria de Bach se revela justamente no fato de ter conseguido converter uma deficiência inerente ao violino e ao violoncelo em um triunfo, simplesmente pela engenhosidade melódica. Quem já não teve a sensação de que a chaconne da Partita nº 2 para violino solo estava sendo tocada por três ou mesmo quatro solistas? A homofonia própria dos instrumentos de corda, todavia, também é inteligentemente explorada e é justamente a combinação dessas duas técnicas, polifonia e homofonia, que faz dessas obras o monumento artístico inigualável. É preciso ter um elevado grau de consciência desse fato para interpretar as Suítes para violoncelo de Bach adequadamente.

O talentoso violoncelista americano Lynn Harrell não parece ter compreendido esse aspecto. O resultado é uma desastrosa interpretação em que o que falta é a própria percepção sonora da arquitetura elaborada por Bach. Já não é uma questão de sentimento ou de visão estética, mas de simples organicidade mecânica da música de Bach. Uma decepção.

Por outro lado, esse inesperado violoncelista chinês Yo-Yo Ma satisfaz plenamente, não somente pelo jogo simples e enérgico de seu arco como pelo estilo e apropriada sensibilidade. Também o som que extrai de seu instrumento é bonito. Se não ombreia, por certo, com Casals, ou mesmo com o sutil Pierre Fournier é certamente uma opção para aqueles que valorizam a superioridade sonora de gravação digital e de CD. Mas que o aficionado não disponha de sua gravação em LP com Casals ou Fournier, pelo menos até que sejam reeditadas em disco compacto.

Nota – Do livro do autor Um Roteiro para Música Clássica. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. 705p. Publicado originalmente no jornal FSP: 16/08/1987.

Johann Sebastian Bach

Cello Suite 1,4,5

Yo Yo Ma

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